quinta-feira, 30 de julho de 2009

Mandado de Segurança

Recepcionada integralmente pela atual Constituição Federal, a Lei do Mandado de Segurança (nº 1533, de 12 dezembro de 1951), que fará cinqüenta anos em 12 de dezembro próximo, nunca esteve tão atual.
O cidadão brasileiro, muito mais consciente de seus direitos, tem visto nesse instrumento, o meio mais rápido e eficaz de fazer valer o seu direito líquido e certo, lesado ou ameaçado de lesão, por ato ilegal ou abusivo.
Daí a conclusão de que é atualíssima a velha Lei do Mandado de Segurança que não sucumbiu aos diferentes Textos Constitucionais que se sucederam nestes anos.
Mesmo às vésperas de seu cinqüentenário, permanecem ainda algumas controvérsias, como, por exemplo, no que diz respeito ao cabimento de recursos das decisões que, em mandado de segurança, concedem ou negam eventual liminar pretendida. A jurisprudência ainda oscila com relação ao recurso cabível de tais decisões. Exemplificando com relação às decisões concessivas de liminar, parte entende que cabe pedido de suspensão de seus efeitos ao Presidente do Tribunal competente para o julgamento, outra corrente entende ser cabível agravo de instrumento e há até quem sustente o cabimento de outra impetração.
A primeira corrente defende que o mandado de segurança tem sistema recursal próprio, que não prevê agravo de instrumento contra decisão que denega ou concede liminar.
É uma controvérsia que persiste e ainda não encontrou pacificação.
Outro ponto, embora pacificado pela jurisprudência, concernente à vedação do uso do mandado de segurança para cobrança de parcelas vencidas anteriormente à impetração, está a merecer reflexão dentro do moderno processo que se prega no início do terceiro milênio.
Segundo a jurisprudência (assentada no texto da Lei nº 5.021/66), ainda que concedida a segurança, não se pode, na via do mandamus, determinar-se o pagamento de parcelas vencidas anteriormente à impetração, decorrentes do mesmo ato impugnado.
A citada Lei se restringe a dispor sobre o pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias asseguradas, em sentença concessiva de mandado de segurança, a servidor público civil, permitindo, em seu art. 1º, o pagamento apenas das prestações que se vencerem a contar da data do ajuizamento da inicial.
Entretanto, os juizes, em sua maioria, têm aplicado tal texto em relação a prestações relativas a pensões e aposentadorias, fora, portanto, da hipótese legal que diz respeito apenas a vencimentos e vantagens pecuniárias de servidor público civil.
Não é difícil a percepção de que a Lei nº 5.021, de 09.06.1966, como não raramente ocorre no Brasil, limita o alcance do Texto Constitucional. Pode-se afirmar que nossa Lei Maior não recepcionou a restrição ao estabelecer, de forma ampla, que "conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por "habeas corpus" ou "habeas data", quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público" (art. 5º, inciso LXIX).
Veja-se que a Constituição Federal não impõe a limitação da Lei nº 5.021/66. E lei nenhuma pode restringir o alcance do Texto Constitucional. Isso seria permitir uma completa e inadmissível inversão do princípio da hierarquia das leis, em que a Lei Maior se submete ao texto de lei ordinária.
Assim, a meu sentir, diante da atual Carta, a citada lei não tem razão de ser, eis que, visivelmente, não foi recepcionada pela nova estrutura jurídica em vigor desde 05.10.1988.
Tenho sustentado que o Poder Judiciário, ao conceder o mandado de segurança, reconhece expressamente a lesão a direito líquido e certo do impetrante, por ato manifestamente ilegal ou abusivo da autoridade impetrada. Ora, se esse ato explicitamente ilegal, assim declarado pela sentença concessiva da segurança, gerou efeitos pecuniários em prejuízo do impetrante, nada mais lógico do que a correção da distorção no próprio mandado de segurança, dispensando-se o prejudicado de ter que mover demorada ação para rever as parcelas que se venceram anteriormente à impetração.
Se a apuração dessas parcelas depende de simples operação aritmética, entendo que, na própria sentença concessiva da segurança, deva o Juiz determinar o pagamento das mesmas (sem exceção) atingidas pelo ato ilegal, ainda que pela via do precatório, em relação às parcelas vencidas antes da impetração, pagando-se imediatamente as prestações que se vencerem no curso da ação mandamental.
É de se ver que, nem a Lei Maior, nem a Lei do Mandado de Segurança, vedam que se possa determinar o pagamento de parcelas vencidas. Como já dito, trata-se de criação jurisprudencial (à luz da Lei 5.021/66) que, se num determinado momento teve razão de ser, merece cuidadosa reflexão e modernização frente ao processo rápido e de resultados que se prega no terceiro milênio.
Declarado ilegal o ato, não devem apenas cessar os seus efeitos, mas há que se reparar, em toda a amplitude, aqueles nefastos efeitos. À luz do processo moderno, não faz sentido o uso de duas ações, quais sejam, uma, mandamental, para fazer cessar os efeitos do ato impugnado, e outra, de cobrança, para que se obtenha a reparação dos danos pecuniários causados pelo mesmo ato. Creio não mais haver obstáculo legal a que os dois objetivos sejam alcançados com o uso do mandado de segurança. Se o ato é ilegal e fere direito líquido e certo, a cessação de seus efeitos, bem como a reparação dos danos por ele causados, devem encontrar amparo na ação mandamental, dispensando-se o impetrante do ajuizamento de nova demorada ação apenas para obter aquela reparação.
A meu sentir, pacificadas as divergências jurisprudenciais acerca de seu sistema recursal e revista a vedação de sua utilização como instrumento hábil a se obter o pagamento de parcelas vencidas, o mandado de segurança, em que pesem os quase cinqüenta anos de sua instituição, se tornará a via perfeita (rápida e eficaz) de acesso do cidadão ao Poder Judiciário, contra atos ilegais e abusivos praticados ao arrepio de seu direito líquido e certo.
Não sustento aqui que a sentença concessiva do writdetermine o imediato pagamento de todas as prestações devidas ao impetrante. Defendo, sim, que as parcelas vencidas no curso da ação sejam pagas imediatamente (e assim já o é), ao passo que as vencidas antes da impetração sejam pagas pela via do precatório. O que não faz sentido é cidadão, cujo direito líquido e certo à prestação já foi declarado na sentença concessiva da segurança, ter que buscar, em outra via (ação de cobrança), de demoradíssima tramitação, o que lhe é devido.
Pacificadas as divergências jurisprudenciais acerca de seu sistema recursal e revista a vedação de sua utilização como instrumento hábil a se obter o pagamento de parcelas vencidas, o mandado de segurança, em que pesem os quase cinqüenta anos de sua Lei, se tornará a via perfeita (rápida e eficaz) de acesso do cidadão ao Poder Judiciário, contra atos ilegais e abusivos praticados ao arrepio de seu direito líquido e certo.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

SERVIDORES UNIDOS EM TORNO DA PARALISAÇÃO.

O SINDISERJ, apesar da decisão judicial que decreta a ilegalidade da paralisação marcada para os dias 28/07/09 (concentração dos servidores no GUMERSINDO BESSA) e 29/07/09 (assembléia a ser realizada em frente ao Palácio da Justiça), e do estranho aviso publicado no site do TJ/Se que noticia a disposição do Tribunal em negociar e ao mesmo tempo comunica aos servidores o corte do ponto ao servidor que aderir ao movimento, mantém a paralisação para os dias marcados.. Quanto à justificativa do TJ/SE em informar sobre a disposição de negociar, o sindicato comunica que também sempre estará disposto à negociação. No entanto, é inadmissível que os servidores do TJ/SE representados pelo SINDISERJ, sejam colocados como os responsáveis pela paralisação, já que é do conhecimento de todos e do próprio TJ/SE, que o sindicato anteriormente havia enviado um ofício para que a Presidência pudesse receber a diretoria do sindicato em audiência agendada, antes ou até o dia da última assembléia (20/07/2009), objetivando a elaboração em conjunto de propostas para serem negociadas na assembléia do dia 20/07/2009. O referido ofício foi inclusive levado a conhecimento da comissão de parlamentares, composta por: Francisco Gualberto, Pastor Antônio, Dra. Angélica e Ana Lucia, que foram recebidos pelo Presidente do TJ/SE antes da assembléia acima mencionada. Os próprios parlamentares comentaram nas sessões extraordinárias dos dias 13/07/2009 e 14/07/2009, sobre a disposição do Presidente do TJ/SE em receber a Diretoria do SINDISERJ, conforme data solicitada no ofício. O estranho é que a Presidência do TJ/SE, somente recebeu a Diretoria do SINDISERJ, após a realização da assembléia do dia 20/07/2009, não atendendo o agendamento proposto pelo SINDISERJ de maneira oficial. O mais estranho ainda é que o representante da ASSOCIAÇÃO DOS OFICIAIS DE JUSTIÇA, Sr. Jairo, informou em assembléia do dia 20/07/2009, que tinha conseguido falar com a Presidência do TJ/SE, antes mesmo da assembléia do SINDISERJ, sem sequer fazer nenhum pedido de audiência através de ofício. Portanto, mesmo diante da falta de atenção aos ofícios enviados pelo SINDISERJ, a Presidência do TJ/SE, o sindicato, está e sempre estará disposto a negociar, de maneira respeitosa, com a Presidência do TJ/SE. Quanto às sanções divulgadas por parte da Presidência, o SINDISERJ informa a todos os Servidores que não tenham medo, porque felizmente estamos vivendo num estado democrático de direito e nós precisamos nos libertar das “amarras ditatoriais” em busca de justiça social. LIBERDADE SEMPRE, JUSTIÇA JÁ! ESTÁ NO MOMENTO DOS SERVIDORES DO TJ/SE DAR O GRITO DE LIBERDADE NOS DIAS 28/07/2009 E 29/07/2009 e, acima de tudo, devemos lutar por justiça salarial, com um Plano de Cargo e Salários justo, discutido e debatido de forma democrática com as partes interessadas, SINDISERJ e Tribunal de Justiça. Este é o momento de fazer história, o Presidente do TJ/SE tem a oportunidade de contribuir com o processo democrático de direito, e fazer também parte da história do TJ/SE, como um dos Presidentes que fez todos os esforços para valorizar de maneira efetiva e concreta os Servidores desta instituição tão importante para a sociedade sergipana. Presidente dê atenção à voz dos Servidores, através dos seus representantes legais (DIRETORIA DO SINDISERJ), negocie, não tome medidas precipitadas, faça história neste Tribunal, escutando e aceitando as reivindicações de servidores honestos e preocupados com a moralidade deste Tribunal.

domingo, 26 de julho de 2009

Direitos Humanos

A o longo dos anos, depois de revoluções e lutas, adentramos ao século XXI e, a comunidade mundial se mostra firmemente voltada aos direitos humanos, na justa medida em que a sociedade se conscientiza da primazia de sua matéria prima, que é o indivíduo.Contudo, evidencia-se, neste momento, a necessidade de localizar historicamente a origem destes direitos, para facilitar o estudo de sua evolução.A origem dos direitos individuais do homem pode ser apontada no antigo Egito e Mesopotâmia, no terceiro milênio a.C., onde já eram previstos alguns mecanismos para proteção individual em relação ao Estado. O Código de Hamurabi (1690 a.C.) talvez seja a primeira codificação a consagrar um rol de direito comuns a todos os homens, tais como a vida, a propriedade, a honra, a dignidade, a família, prevendo, igualmente, a supremacia das leis em relação aos governantes. A influência filosófica-religiosa nos direitos do homem pôde ser sentida com a propagação das idéias de Buda, basicamente sobre a igualdade de todos os homens (500 a.C.). Posteriormente, já de forma mais coordenada, porém com uma concepção ainda muito diversa da atual, surgem na Grécia vários estudos sobre a necessidade da igualdade e liberdade do homem, destacando-se as previsões de participação política dos cidadãos (democracia direta de Péricles); a crença na existência de um direito natural anterior e superior às leis escritas, defendida no pensamento dos sofistas e estóicos (por exemplo, na obra Antígona – 441 a.C. - Sófocles defende a existência de normas não escritas e imutáveis, superiores aos direitos escritos do homem). Contudo, foi o Direito romano quem estabeleceu um complexo mecanismo de interditos visando tutelar os direitos individuais em relação aos arbítrios estatais. A Lei das Doze Tábuas pode ser considerada a origem dos textos escritos consagradores da liberdade, da propriedade e da proteção aos direitos do cidadão.Tempos depois, com o Cristianismo, veio o homem se deparar com esta concepção religiosa, que se baseava na idéia de que cada pessoa é criada à imagem e semelhança de Deus. O que posteriormente, será abordado pelo Iluminismo, desta feita, diante de uma nova visão, destacando a imagem de Deus criador, apartando-a da figura material da própria igreja que vincula e propaga a religião entre os povos. Para o iluminismo, Deus está na natureza e no homem, que pode descobri-lo por meio da razão e da ciência que são as bases do entendimento do mundo, dispensando a Igreja. Afirma que as leis naturais regulam as relações sociais e considera os homens naturalmente bons e iguais entre si – quem os corrompe é a sociedade. Cabe, portanto, transformá-la e garantir a toda liberdade de expressão e culto, igualdade perante a lei e defesa contra o arbítrio.O que importa, é que a descoberta de Deus, seu reconhecimento como criador de todas as coisas, sua latente influência comportamental, nitidamente, não bastaram para impedir que a sociedade humana vivesse posteriormente períodos extensos e de opressão, tais como, o absolutismo, que caracterizou um longo período da história. Que se iniciou com o fim do feudalismo, crescendo conforme a centralização de poderes aumentava. O seu ápice deu-se durante a Idade Moderna, quando a vontade do rei era a lei, e o rei era ele mesmo o Estado. Com o poder do rei, originaram-se "os pactos, os forais e as cartas de franquias, outorgantes da proteção de direitos reflexamente individuais, embora diretamente grupais, estamentais, dentre os quais mencionam-se: o de León e Castela (1188); o de Aragão (1265); o de Viscaia (1526) e o mais famoso entre estes, a Magna Carta inglesa (1215-1225)". Outros documentos de relevância para o estudo das garantias individuais são a Mayflower Campact de 1620, que garantia um governo limitado e também as Cartas de direitos e liberdades das Colônias inglesas na América, como: Charter of New England, 1620; Charter of Massachusetts Bay de 1629; Charter of Maryland de 1632; Charter of Connecticut de 1662; Charter of Rhode Island de 1663; Charter of Carolina de 1663; Charter of Georgia de 1732, Massachusetts Body of Liberties de 1641; New York Charter of Liberties de 1683 e Pennsylvania Charter os Privileges de 1701.Já na Inglaterra, "elaboram-se cartas e estatutos assecuratórios de direitos fundamentais, como a Magna Carta (1215-1225) que protegia essencialmente apenas os homens livres, a Petition of Rights (1628) que requeria o reconhecimento de direitos e liberdades para os súditos do Rei, o Habeas Corpus Amendment Act (1769) que anulava as prisões arbitrárias e o Bill os Rights (1688), o mais importante destas, pois submetia a monarquia à soberania popular, transformando-a numa monarquia constitucional, e, sem esquecer do Act of Settlement (1707) que completa o conjunto de limitações ao poder monárquico do período".Assim, mister se faz ressaltar que no século XVII foram feitas conquistas substanciais e definitivas, contudo o surgimento das liberdades públicas tem como ponto de referência duas fontes primordiais: o pensamento iluminista da França do século XVIII e a Independência Americana. Porque nestes Séculos XVI e XVII, quando os governos absolutistas começaram a se firmar, após vencer a prolongada resistência dos senhores feudais, fundado na doutrina de que "toda autoridade emana de Deus", assim, o governo absolutista só presta contas a Deus por seus atos, e, em razão disto, começou a exigir obediência incondicional ao soberano, bem como, resistir à interferência dos papas nos governos seculares.A Reforma Protestante do século XVI também colabora para o fortalecimento da autoridade monárquica, pois enfraquece o poder papal e coloca as igrejas nacionais sob o controle do soberano. Com a evolução das leis, com base no estudo do direito romano, surgem teorias que justificam o absolutismo, como as de Nicolau Maquiavel (1469-1527), Jean Bodin (1530-1595), Jacques Bossuet (1627-1704 ) e Thomas Hobbes (1588-1679).O Estado absolutista típico é a França de Luís XIV (1638-1715). Conhecido como o Rei Sol, a ele é atribuída a frase que se torna o emblema do poder absoluto: "O Estado sou eu". Luís XIV atrai a nobreza para o Palácio de Versalhes, perto de Paris, onde vive em clima de luxo inédito na história do Ocidente. Na Inglaterra, no início do século XVI, Henrique VIII, segundo rei da dinastia Tudor, consegue impor sua autoridade aos nobres com o apoio da burguesia e assume também o poder religioso. O processo de centralização completa-se no reinado de sua filha Elizabeth I. No século XVIII surge o despotismo esclarecido, uma nova maneira de justificar o fortalecimento do poder real, apoiado pelos filósofos iluministas. O processo de extinção do absolutismo na Europa começa na Inglaterra com a Revolução Gloriosa (1688), e esse conflito sem batalhas é também chamado de Revolução sem Sangue. Guilherme de Orange torna-se rei da Inglaterra com o nome de Guilherme III, depois de assinar a Bill of Rights (Declaração de Direitos), em 16 de dezembro de 1689, que institui o governo parlamentar inglês. Na declaração estão os limites de atuação do monarca. Ele é obrigado a submeter ao Parlamento a aprovação de qualquer aumento de impostos e deve garantir a liberdade de imprensa, a liberdade individual e da propriedade privada. O anglicanismo é confirmado como religião oficial e toleram-se todos os credos, menos o católico. O ministério, além disso, deve observar uma alternância entre a nobreza latifundiária e a burguesia urbana. Dessa forma, a monarquia absoluta inglesa é substituída pela monarquia constitucional, que limita a autoridade real com a Declaração de Direitos (Constituição), assinalando a ascensão da burguesia ao controle do Estado. Na França, o absolutismo termina com a Revolução Francesa (1789).Com o fim do absolutismo, adentramos ao Iluminismo, que é a corrente de pensamento dominante no século XVIII, que defende o predomínio da razão sobre a fé e estabelece o progresso como destino da humanidade. Seus principais idealizadores são John Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755), Voltaire (1694-1778) e Rousseau (1712-1778). Representa a visão de mundo da burguesia intelectual da época e tem suas primeiras manifestações na Inglaterra e na Holanda. Alcança especial repercussão na França, onde se opõe às injustiças sociais, à intolerância religiosa e aos privilégios do absolutismo em decadência. Influencia a Revolução Francesa, fornecendo-lhe, inclusive, o lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade.E, este momento histórico foi acalantado pelo liberalismo, que é zeloso defensor da liberdade dos indivíduos. Essa liberdade é sempre concebida, porém, de forma negativa: o indivíduo é tão mais livre quanto menos ele é impedido de realizar seus desejos e objetivos por fatores externos a ele. A única restrição legítima à liberdade do indivíduo que o liberalismo admite é aquela decorrente do princípio de que todos devem ser igualmente livres. A liberdade de um indivíduo só pode ser restringida, portanto, quando sua não restrição implique restrição indevida da liberdade de outros. Em suma, a liberdade de um termina onde começa a do outro.Entretanto, no campo jurídico e constitucional, convém dizer que a Inglaterra foi o país que assumiu a vanguarda exercendo grande influência na história universal. Como exemplos de sua evolução jurídica, conferindo-lhes status de matéria constitucional, vale citar a Petition of Right, que surgiu para a proteção dos direitos pessoais e patrimoniais, de 1628, a Acta de Habeas Corpus, de 1679, que proibiu a detenção das pessoas na falta de um mandamento judicial, e, em 1689, a Declaration of Rights, que realizou a confirmação de muitos direitos que já estavam consagrados em textos legais anteriores.Seguindo a esteira desses documentos indicados, em 12 de junho de 1776, surge a Declaração de Direitos da Virgínia, o Bill of Rights redigido por George Mason, especificando os direitos do homem e do cidadão. Também como resultado da Revolução Americana, é importante citar a Declaração de Independência de 4 de julho daquele mesmo ano, que considerou certos direitos inalienáveis e destacou expressamente os direitos relativos à vida, à liberdade e à busca da felicidade.E desta maneira, por todos focos de que emanaram, e ainda, por uma concepção de que cada indivíduo é único em sua essência e composição, razão pela qual, reportemo-nos às palavras do Professor Hélio Bicudo ao dissertar sobre os direitos humanos:"... esses direitos passaram a ser inscrito nas cartas políticas das nações ocidentais. No entanto, a trajetória da humanidade demonstra que aos povos não bastam, para o aperfeiçoamento dos direitos e deveres escritos em seus Códigos de conduta. A exigência de novos direitos e deveres surgem na medida em que o homem se insere na comunidade, que não é estática; mas cada vez mais dinâmica e se qualifica como cidadão".E o mestre acresce tal idéia, ilustrando-a com o parecer da Doutora Márcia Mattos Gonçalves Pimentel, PHD em genética humana, da universidade do Estado do Rio de Janeiro, que através de seus estudos e conhecimentos, consegue mostrar um outro foco de centralização, que reitera a individualidade, atribuindo-lhe significância, in verbis:"...O ser humano deve, então, ser respeitado e tratado como pessoa dede de sua concepção, pois a partir do momento em que o óvulo é fecundado pelo espermatozóide inicia-se uma nova vida que não é aquela do pai ou da mãe, e sim a de um novo organismo que dita seu próprio desenvolvimento, sendo dependente do ambiente intra-uterino da mesma forma que somos dependentes do oxigênio para viver, biologicamente, cada ser humano é um evento genético único que não mais se repetirá". [1]E desta forma, inaugurado na modernidade, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1.948, que o Direito Internacional com alicerces axiológicos, vêm assegurar por um gradativo progresso substancial, e, traz ao indivíduo o exercício efetivo de direitos natos, desde então, individuados. De sorte, que na esfera interna ou internacional, o homem deverá necessariamente ser entendido como um ponto crucial e culminante da sociedade, sociedade esta que se justifica e se perfaz do conjunto de seres individuais, cada qual, com sua personalidade única e, portanto, exclusiva, daí porque, há que se considerar representativamente o seu significado dentro do organismo coletivo, oferecer a cada um, aquilo que supre seus anseios e necessidades, respeitando e assegurando sua individuação

Danos Morais

1.INTRODUÇÃO
Trata-se de um tema gerador de certa preocupação. Ocorre que no Judiciário, diariamente, um grande número de ações são ajuizadas, na Justiça Comum e Juizados Especiais Cíveis, com pedidos de indenizações por danos morais, quando, na verdade, trata-se de transtornos diários inerentes do cotidiano de uma sociedade complexa, como esta que vivemos. Dentre estes aborrecimentos, incidem com maior freqüência o mau atendimento ao consumidor, a má prestação de serviços etc.
É certo que estes fatos são, muitas vezes, desagradáveis e causam, certamente, uma espécie de desconforto ou aborrecimento, devendo a vítima, assim, procurar dar continuidade a sua vida, fazendo com que o episódio desagradável lhe de salutar habilidade para enfrentar estas situações enfadonhas próprias do cotidiano.
Estes casos, entretanto, não ensejam, com certeza, qualquer espécie de indenização (salvo por danos materiais, se for o caso), pois, imaginemos se, toda vez que fossemos vítimas de infortúnios episódios, pleitearíamos indenizações junto ao Judiciário. Causaríamos, assim, um verdadeiro caos, ou, supondo-se devidas tais indenizações por "aborrecimentos morais", estaríamos diante de um quadro de falência total do Estado, bem como das grandes e pequenas empresas.
2.O DANO MORAL
O dano moral é reconhecido desde a época em que o homem começou a ditar regras de conduta e de respeito a seus semelhantes, pois na Bíblia, especialmente no Deuteronômio, já havia punição prevista, como também estabeleciam formas diversas de indenização: o Código de Manu, o Código de Ur, o Código de Hamurabi, o Alcorão, que adota a Lei do Talião, mas admitindo a substituição da pena por indenização.2
Ante o tema, urge-se conceituar o dano moral. Desse modo, singelamente, pode-se dizer que dano moral é o detrimento da personalidade de alguém causado por ato ilícito de outrem. Este prejuízo pode derivar-se de violação de norma jurídica ou contratual.
O corolário do prejuízo é a reparação do dano. O lesado pode, em virtude do estrago suportado, valer-se de expedientes agasalhados pelo Direito, seja na esfera administrativa, penal ou civil. É neste último que o interessado pode pedir a tutela jurisdicional, através do direito de ação de indenização, pleiteando, assim, a compensação pelo constrangimento sustentado.
No dano moral, ao revés do que ocorre no dano material, segundo as palavras de Luís Antonio Rizzato, não há prejuízo econômico, possuindo a indenização outro significado. Seu objetivo é duplo: satisfativo-punitivo. Por um lado, a paga em pecúnia deverá amenizar a dor sentida. Em contrapartida, deverá também a indenização servir como castigo ao ofensor, causador do dano, incutindo-lhe um impacto tal, suficiente para dissuadi-lo de um novo atentado.3
3.DIFERENÇA ENTRE O DANO MORAL E O MERO ABORRECIMENTO.
A Constituição Federal (1988) consagrou a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, além da indenização pelo dano moral decorrente de sua violação.
Com efeito, é mister observar, contudo, a preocupação acerca da grande quantidade de indenizações por danos morais pleiteadas perante o Judiciário quando, na verdade, não há qualquer dano moral indenizável, mas um desgosto freqüente no cotidiano.
Atualmente, em razão das inúmeras atividades realizadas na sociedade, o homem esta sujeito à toda sorte de acontecimentos que poderiam enfadá-lo, todavia, essas situações, em regra, não geram qualquer verossimilhança de uma indenização, ou seja, não configura-se o dano moral.
Considera-se dano moral a dor subjetiva, dor interior que fugindo à normalidade do dia-a-dia do homem médio venha a lhe causar ruptura em seu equilíbrio emocional interferindo intensamente em seu bem estar.4
Além de motivos fúteis que fundamentam as exordiais de ação por danos morais, existem aqueles que baseiam-se na concupiscência de alguns desafortunados que utilizam-se do instituto com o fito de locupletar-se às custas, máxime de pessoas jurídicas de direito público e privado.
4.ALGUMAS HIPÓTESES DE NÃO CABIMENTO
- Ação ajuizada pelos filhos dezessete anos após a morte do pai (Bol. AASP 2133/1196);
- Ansiedade decorrente de processo judicial (JTJ-LEX 168/177);
- Abertura de Inquérito Policial decorrente de falsa atribuição de crime (JTJ-LEX 216/191);
- Extravio de bagagem, pois a simples sensação de desconforto, de aborrecimento, causado pela perda ou extravio de bagagem durante uma viagem, não constitui dano moral, suscetível de constituir objeto de reparação (RSTJ 471/15);
- Mero exercício do direito de defesa em juízo (Bol. AASP 2140/9);
- Pedido de reparação de dano moral feito por homem casado contra a ex-amante (JTJ-LEX 204/20);
- Recusa de cheque por estabelecimento comercial (JTJ-LEX 206/94);
- Representação feita contra advogado à OAB (RT 707/148);
- Revista pessoal em empregados da empresa para evitar furtos (RT 772/157);
- Venda indevida de jóia penhorada, pois deferimento de tal pretensão implicaria em admitir que todo fato lesivo provoca necessariamente, per se, danos morais (RT 747/445).
- Sedução de mulher maior, funcionária pública, de boa formação escolar, com promessa de casamento.5
5.REFLEXO NO JUDICIÁRIO
Atualmente, é uma preocupação iminente o excesso de demandas que sobrecarregam juizes e Tribunais devido, principalmente à falta de recursos para estabelecer a criação e modernização das instalações forenses, bem como para promover concursos para o funcionalismo judiciário e magistratura. Este acréscimo de ações preocupa, máxime os Juizados Especiais Cíveis, criados pela Lei n.º 9099/95 com o fito de diminuir o acesso à Justiça Comum, dar maior agilidade processual e oferecer a prestação jurisdicional, brevemente, às causas de menor complexidade, contudo, isso não vem acontecendo.
Certamente, este é um tema que merece toda a atenção, pois inúmeras são as ações que movem a "máquina" do judiciária desnecessariamente, causando um excesso de demandas daqueles que pleiteiam uma indenização por danos morais descabida, em virtude de algum aborrecimento do cotidiano ou requerendo algum enriquecimento às custas de algum afortunado ou alguma multinacional. É o que chamamos de "indústria do dano moral".
6. A NECESSIDADE DE PRESERVAR O INSTITUTO
A ação por danos morais, como direito constitucional, deve ser resguardada daqueles que a utilizam de modo incoerente, seja por absoluta impropriedade do expediente, seja para enriquecer gananciosos em detrimento de alguma instituição ou pessoa, pois o Judiciário não pode ser utilizado como instrumento de vingança ou investimento.
Realce-se que, destarte, é vedado ao Judiciário obstar a apreciação de um pedido indenizatório antes da formação processual do actum trium personarum, se presentes todos os requisitos da ação. Se dessa forma proceder, estará o julgador violando o direito de acesso ao Judiciário previsto na Carta Magna.
7.CONCLUSÃO
Por derradeiro, evidentemente, é indispensável determinada cautela àqueles que movem a "máquina" judiciária pleiteando indenizações por danos morais. Esta espécie de ação não compreende demasiados esforços para motivar um possível sucesso a final, contudo é indubitável que, para se obter uma verossímil decisão favorável é exigível do profissional certa prudência e, principalmente, bom senso ao operar a Justiça.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Fiador

Ao Direito tem de ser inolvidável a disciplina básica da contratualidade sem, contudo, desrespeitar a autonomia da iniciativa privada. Deve-se conciliar o império da lei com a vontade das partes. Se a legislação assim não procede, cabe ao exegeta fazê-lo. Assim caminhou o Código Civil de 2002 quando, no artigo 835, tratou da hipótese de exoneração do fiador coadjuvante de contrato por prazo indeterminado.
Mas a novel disciplina da forma e dos efeitos da exoneração do fiador levantou algumas celeumas no campo doutrinário, tendo mesmo abalizadas vozes sustentado que, agora, basta a notificação para que o fiador esteja automaticamente exonerado. Seria mesmo possível? Cremos que não. De todo modo, isso é matéria para um estudo específico.
Por agora, trataremos de outro, daquele que nos tem sido causa de certo espanto: a tendência de alguns em vaticinar que o Novo Código Civil em nada, absolutamente nada, afetou o contrato de fiança prestado em favor de locador de imóvel predial urbano, de tal sorte a permanecê-lo vinculado enquanto perdurar a locação e não for o imóvel devidamente devolvido (ficticiamente, com a entrega das chaves), ainda que por prazo indeterminado, não bastando simples notificação para exonerá-lo – nem mesmo ação judicial.
Assim, questão que tem merecido algumas laudas e tintas da pena, versa sobre as regras de direito intertemporal. Explicamo-nos: o artigo 2.306 do novo Código Civil ressalvou a vigência da Lei n. 8.245/91 (Lei Inquilinária) quanto às locações de imóvel urbano. Com base neste artigo das disposições finais e transitórias do novo Estatuto do Direito Privado, até mesmo o Exame da Secção Paulista da Ordem dos Advogados do Brasil explicitou que "o artigo 835 do novo Código Civil não se aplica aos contratos de locação de imóvel urbano, uma vez que o art. 39 da Lei 8.245/91 (Lei do Inquilinato) estabelece que qualquer das garantias da locação se estende à efetiva entrega das chaves, e o novo Código Civil ressalvou em regra de direito intertemporal a vigência daquela lei especial" (gabarito da 2ª Fase do 121º Exame, resposta à questão 1ª de Direito Civil).
Ora, não se ignora o comando insculpido no artigo 2.306 do novo Código Civil. Entretanto, de igual, não pode o intérprete cerrar os olhos ao disposto no artigo 79 da Lei do Inquilinato, força do qual aplica-se subsidiariamente as normas do Código Civil naquilo que aquela Lei Especial for omissa. E isso é princípio básico, lógico e indeclinável de hermenêutica, aplicável no conflito aparente de normas especiais com gerais.
Feita esta observação, resta-nos saber se os artigos 37 a 42 a Lei Inquilinária tratam efetivamente da exoneração do fiador e de seus efeitos.
Entendemos que, salvante aquela hipótese ventilada no inciso IV do artigo 40, a Lei Inquilinária não tratou deste assunto, quedando-se inteiramente silente. Nem mesmo o artigo 39 desse Codex tem o alcance que lhe pretendem conferir alguns exegetas.
Não fosse o bastante, ao aceitarmos irrestritamente o comando insculpido neste artigo, concluiremos que todos os contratos que prevejam que a fiança vigorará até a entrega das chaves autorizam, de per si, a exoneração do fiador, posto sujeitos a condição (e não a termo), sendo portanto de prazo indeterminado.
E mais. O disposto no artigo 2.306 do novo Código Civil tem em vista o contrato de locação de prédio urbano, o que não se confunde com o acessório contrato de fiança. As relações jurídicas locacionais de prédio urbano entre senhorio e inquilino permanecem sob a égide da Lei n. 8.245/91; mas, de outra banda, o ato jurídico subjacente envolvendo o fiador do contrato de locação de imóvel urbano está sujeito ao novo Código Civil, naquilo que for omissa a Lei n. 8.245/91.
Logo, a pessoa que figurar como fiadora em contrato de locação pode exonerar-se da fiança que tiver assinado sem limitação de tempo, sempre que lhe convier, ficando obrigada por todos os efeitos da fiança, durante sessenta dias após a notificação do credor.
De outra banda, asseverar que basta a notificação para se exonerar, assim não entendemos, ao menos em análise perfunctória, por contrariar todo o sistema normativo, princípios básicos como a inafastabilidade do controle jurisdicional, além de causar extrema insegurança nos negócios jurídicos em geral, mormente os de maior reflexo social, econômico e financeiro, como os contratos bancários, já que o instituto da fiança não é privilégio das locações prediais urbanas e não poderíamos, por pura lógica jurídica, aceitar a dispensa da ação num caso e exigi-la noutro quando em verdade tem no cerne a mesma essência: garantia do cumprimento da obrigação principal.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

O que é Habeas Corpus?

Um termo muito utilizado na esfera criminal do direito é o habeas corpus, expressão latina que significa “Que tenhas o corpo”. Na verdade, o habeas corpus completamente se chama habeas corpus ad subjiciendun, pois era assim que começavam os escritos pedindo a liberação de um presidiário na Idade Média. O termo foi oficializado em 1215, quando foi imposto ao rei João Sem Terra, a Magna Carta Libertatum, limitando os poderes reais e iniciando o processo de origem das Constituições ao longo da história. O habeas corpus é uma garantia constitucional outorgada. Segundo a Constituição, a garantia “beneficia quem sofre ou se acha ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder". No Brasil, o primeiro código que passou a reconhecer esse instrumento legal de proteção individual foi a Constituição Brasileira de 1891. Esse instrumento pode ser requerido por qualquer pessoa que ache que o seu direito à liberdade está sendo violado. Para se redigir um habeas corpus, não é necessário a presença de advogado. Esse mecanismo é de caráter informal, visto que não é necessário nenhum tipo de documento para requerê-lo, ainda mais que o habeas corpus pode ser impetrado em qualquer simples folha de papel. A pessoa que está sofrendo a ameaça aos seus direitos de liberdade não pode requerer diretamente seu habeas corpus, porém a garantia pode ser feita por qualquer terceiro, até mesmo sem nenhuma autorização do acusado. Normalmente, sempre que é apresentado o habeas corpus a um juiz, é emitida uma liminar devolvendo o preso às ruas, para que ele assim, responda o processo em liberdade.

domingo, 19 de julho de 2009

Direitos da Personalidade.

1.1 Breve histórico
A idéia, doutrina ou teoria dos direitos da personalidade, surgiu a partir do século XIX, sendo atribuída a Otto Von Gierke, a paternidade da construção e denominação jurídica (1). Porém, já nas civilizações antigas começou a se delinear a proteção à pessoa. Em Roma, a proteção jurídica era dada à pessoa, no que concerne a aspectos fundamentais da personalidade, como a actio iniuriarium, que era dada à vítima de delitos de iniuria, que poderia ser qualquer agressão física como também, a difamação, a injúria e a violação de domicílio (DIGESTO apud AMARAL, 2002).
Neste sentido, é de ser observado que já havia, em Roma, a tutela de diversas manifestações da personalidade, apenas não apresentando a mesma intensidade e o mesmo aspecto que hoje, principalmente devido à diferente organização social daquele povo, distante e desprendidos da visão individualista que possuímos de nossa pessoa, e da inexistência de tecnologia e aparelhos que viessem a atacar e violar as diversas manifestações da personalidade humana (DIGESTO apud AMARAL, 2002, p. 249).
Não é demais relembrar, de outra parte, a marcante contribuição do pensamento filosófico grego para teoria dos direitos da personalidade, em vista do dualismo entre o direito natural (ordem superior criada pela natureza) e o positivo (leis estabelecidas pelos homens), sendo o homem a origem e razão de ser da lei e do direito. Nos dizeres Capelo de Souza, analisando a experiência grega, "o homem passou a ser tido como origem e finalidade da lei e do direito, ganhando, por isso, novo sentido os problemas da personalidade e da capacidade jurídica de todo e cada homem e dos seus inerentes direitos da personalidade" (1995, p. 47).
Mais tarde, o Cristianismo criou e desenvolveu a idéia da dignidade humana, reconhecendo a existência de um vinculo entre o homem e Deus, que estava acima das circunstâncias políticas que determinavam em Roma o conceito de pessoa - status libertatis, civitatis e familia (AMARAL, 2000, p. 249). Não obstante, se a hybris grega e a actio injuriarumpodem ser consideradas a origem remota da teoria dos direitos da personalidade (GODOY, 2001), em verdade, foi particularmente, na Idade Média que se lançaram as sementes de um conceito moderno de pessoa humana, baseado na dignidade e na valorização do indivíduo como pessoa" (SZANIAWSKI, 1993, p. 22). Seguiram-se, o Renascimento e o Humanismo, no século XVI.
Nesta mesma esteira, veio depois, o Iluminismo nos séculos XVII e XVIII, quando se desenvolveu a teoria dos direitos subjetivos que consagra a tutela dos direitos fundamentais e próprios da pessoa humana (ius in se ipsum).Finalmente, a proteção da pessoa humana, veio consagrada nos textos fundamentais que se seguiram, como o Bill of Rights, em 1689, a Declaração de Independência das Colônias inglesas, em 1776, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada em 1789, com a Revolução Francesa, culminando na mais famosa, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, votada em 1948, pela Assembléia geral da ONU, que se constituem em verdadeiros marcos históricos da construção dos direitos da personalidade. "Os direitos da personalidade surgiram nos citados textos fundamentais como direitos naturais ou direitos inatos, que denominavam inicialmente de direitos humanosassim compreendido os direitos inerentes ao homem" (AMARAL, 2002, p. 251).
Mais recentemente, o Código Civil Italiano de 1942, deu-lhes uma parcial disciplina, já de forma sistemática, embora esteja muito longe de apresentar especificação e classificação acabadas. O seu livro I dedica um título autônomo, o primeiro, às ‘pessoas físicas’, e os artigos 5 a 10, contidos nesse mesmo título, respeitam precisamente aos direitos da personalidade (DE CUPIS, 1961), mais especificamente nos arts. 6, 7, 8 e 9, sobre a tutela do nome e no art. 10, sobre o direito à imagem. Nestes dispositivos, consoante conclui Silvio Rodrigues, "se encontram as duas medidas básicas de proteção aos direitos da personalidade, ou seja, a possibilidade de se obter judicialmente, de um lado, a cessação da perturbação e, de outro, o ressarcimento do prejuízo experimentado pela vítima" (2002, p. 63).
Em verdade, a teoria dos direitos da personalidade ganhou relevo, quando levada ao texto expresso, na Constituição alemã de 1949, na Constituição portuguesa de 2 de abril de 1976 e ainda, mais tarde, pela Constituição espanhola de 31 de outubro de 1978, que no art. 10, estabelece que "La dignidad de la persona, los derechos inviolables que le son inherentes, el libre desarrollo de la personalidad, el respeto a la ley a los derechos de los demás son fundamento del orden político y de la paz social".
Entre nós, já na Constituição Imperial se vislumbrava a presença de alguns "precedentes" acerca dos direitos da personalidade, como a inviolabilidade da liberdade, igualdade e o sigilo de correspondência, aos que a primeira Constituição Republicana de 1891, acrescentaria a tutela dos direitos à propriedade industrial e o direito autoral, ampliando-se o seu regime nas de 1934 e 1946. Contudo, estes direitos não se fizeram presentes no Código Civil de 1916.
Foi precisamente com o advento da Constituição Federal de 1988, que os direitos da personalidade foram acolhidos, tutelados e sancionados, tendo em vista a adoção da dignidade da pessoa humana, como princípio fundamental da República Federativa do Brasil, o que justifica e admite a especificação dos demais direitos e garantias, em especial dos direitos da personalidade, expressos no art. 5.o, X, que diz:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
No entanto, apenas a título de informação, vale dizer que, já bem antes do advento da Constituição Federal de 1988, os doutrinadores e legisladores tentaram disciplinar a matéria entre nós, tendo sido inserida no anteprojeto do Código Civil, em 1962, por Orlando Gomes, cuja proteção era até então reconhecida somente pela jurisprudência. "Essa proteção consistia em propiciar a vítima meios de fazer cessar a ameaça, ou a lesão, bem como de dar-lhe o direito de exigir reparação do prejuízo experimentado, se o ato lesivo já houvesse causado dano" (RODRIGUES, 2002, p. 65).
O Projeto do Código Civil de 1962, não saiu do papel, sendo que posteriormente em 1975, um novo projeto foi delineado (projeto de Lei n.o 635), desta vez tendo a frente o ilustre jurista Miguel Reale, o qual, após inúmeras alterações, permanecendo esquecido, até que finalmente, foi aprovado pelo Congresso Nacional, por meio da Lei 10.406/2002, que instituiu o Novo Código civil Brasileiro, entrando em vigor em 11 de janeiro do corrente ano.
O novo Código Civil Brasileiro, por sua vez, em consonância com o já prescrito de longa data pela Lei Maior e com as novas relações sociais que reclamam a necessidade da tutela dos valores essenciais da pessoa, dedicou capítulo especial (Capítulo II, artigos do 11 ao 21) sobre os direitos da personalidade. Afora os princípios gerais mencionados nos artigos 12 e 21 - que cuidam-se "de normas que não prescrevem uma certa conduta, mas, simplesmente, definem valores e parâmetros hermenêuticos. Servem assim como ponto de referência interpretativo e oferecem ao intérprete os critérios axiológicos e os limites para a aplicação das demais disposições normativas" (TEPEDINO, 2003, p. 29) - refere-se especificamente, ao direito de proteção a inviolabilidade da pessoa natural, à integridade do seu corpo, nome e imagem.
Considera-se, entretanto, que tal enumeração não deve ser tida como exaustiva, uma vez que "a ofensa a qualquer modalidade de direito da personalidade, dentro da variedade que a matéria propõe, pode ser coibida, segundo o caso concreto" (VENOSA, 2002, p. 153), com base no que prescreve a Carta Magna Brasileira, que proclama a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental. Dessarte, como se posiciona Tepedino,
a partir daí, deverá o intérprete romper com a óptica tipificadora seguida pelo Código Civil, ampliando a tutela da pessoa humana não apenas no sentido de admitir um ampliação de hipóteses de ressarcimento, mas de maneira muito mais ampla, no intuito de promover a tutela da personalidade mesmo fora do rol de direitos subjetivos previstos pelo legislador codificado (2003, p. 27)
Assim, assentes na legislação atual, os direitos da personalidade são disciplinados e protegidos, pela Constituição Federal, pelo Novo Código Civil, bem como pelo Código Penal e ainda, em legislação especial, como a Lei de Imprensa, a Lei dos Transplantes, dos Direitos Autorais, etc, o que nos leva a concluir, inevitavelmente, em face dos princípios, normas e conceitos que formam o sistema brasileiro dos direitos da personalidade, que a tutela jurídica dessa matéria se estabelece em nível constitucional, civil e penal (AMARAL, 2002).
Em apertada síntese, é possível aduzir-se que a teoria dos direitos da personalidade, assim como suas formas de tutela, evoluíram progressivamente à exata medida que se desenvolveram as idéias de valorização da pessoa humana, sendo que os direitos da personalidade adquiriram tanto mais revelo quanto se distinguiu, na pessoa humana, o elemento incorpóreo da dignidade (GODOY, 2001).
1.2 Conceito e natureza jurídica dos Direitos da Personalidade
Desde que vive e enquanto vive o homem é dotado de personalidade, que, consoante preconiza Clóvis Beviláqua, "é a aptidão, reconhecida pela ordem jurídica a alguém, para exercer direitos e contrarie obrigações" (1949, p. 180), ou, ainda, em outros termos, como ensina, Silvio Venosa, "é o conjunto de poderes conferidos ao homem para figurar nas relações jurídicas" (2002, p. 148). Todavia vale dizer, que a personalidade não é um direito, mas sim, um conceito sobre o qual se apoiam os direitos a ela inerentes (2).
Nos dizeres de Caio Mario, "não constitui esta ‘um direito’, de sorte que seria erro dizer-se que o homem tem direito à personalidade. Dela porém, irradiam-se direitos sendo certa a afirmativa de que a personalidade é o ponto de apoio de todos os direitos e obrigações"
(2002, p. 154). Na mesma direção pontifica Diniz, citando Goffredo Telles Júnior:
A personalidade consiste no conjunto de caracteres próprios da pessoa. A personalidade não é um direito, de modo que seria errôneo afirmar que o ser humano tem direito à personalidade. A personalidade é que apóia os direitos e deveres que dela irradiam, é o objeto de direito, é o primeiro bem da pessoa, que lhe pertence como primeira utilidade, para que ela possa ser o que é, para sobreviver e se adaptar às condições do ambiente em que se encontra, servindo-lhe de critério para aferir, adquirir e ordenar outros bens. ( 2003, p. 119)
Pontes de Miranda, no entanto, ao definir aos direitos da personalidade como todos os direitos necessários a realização da personalidade e à sua iserção nas relações jurídicas, afirma, que o primeiro desses direitos é o da personalidade em si mesma, explicando que, não se trata de direito sobre a pessoa. O direito de personalidade como tal não é direito sobre a própria pessoa: é o direito que se irradia do fato jurídico da personalidade (= entrada, no mundo jurídico, do fato do nascimento do ser humano com vida). Há direitos da personalidade que recaem in corpus suum; não está entre eles, o direito de personalidade como tal (2000, p. 39).
O nosso direito assenta a regra do direito romano, pelo qual a personalidade coincide com o nascimento, antes do qual não há se falar em sujeito de direito, contudo a legislação assegura proteção especial, resguardando os interesses do nascituro, desde sua concepção. Partindo-se desta premissa, vale dizer, por conseguinte, que somente com a morte, real ou presumida, cessa a personalidade da pessoa natural e, em regra, os direitos inerentes a ela.
Na doutrina alienígena não é diferente, consoante informa o espanhol Del Rio, "sólo el ser humano es persona física. Hoy, todo hombre es persona. De esta doble afirmación se deduce, a s vez, una doble consecuencia: primera, que las cosas inanimadas y los animales no pueden ser sujetos (activos o pasivos) de derechos; segunda, que la personalidad únicamente puede reconocerse con la vida (con el nacimiento)" (2000, p. 50).
Para conceituação dos Direitos da Personalidade, importa dizer, em primeiro lugar, que a forma como surgiu a noção do que seriam os direitos da personalidade, permitiu o afloramento de inúmeras divergências conceituais, que perduram até hoje, persistindo as incertezas e obscuridades mencionadas pelo professor Milton Fernandes (1980), décadas atrás.
Consideram-se, pois, direitos da personalidade, segundo Carlos Alberto Bittar, "os direitos reconhecidos à pessoa humana tomada em si mesma e em suas projeções na sociedade, previstos no ordenamento jurídico exatamente para a defesa de valores inatos no homem, como a vida, a higidez física, a intimidade, a honra, a intelectualidade e outros tantos" (1995, 01).
Na imagem de Orlando Gomes (2001), são direitos essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana, que a doutrina moderna preconiza e disciplina, no corpo do Código Civil, como direitos absolutos. Destinam-se a resguardar a eminente dignidade da pessoa humana, preservando-a dos atentados que pode sofrer por parte de outros indivíduos. Ou, por fim, como define Francisco Amaral, "direitos da personalidade são direitos subjetivos que têm por objeto os bens e valores essenciais da pessoa, no seu aspecto físico, moral e intelectual" (2001, p. 243).
Como já delineado, a doutrina, tem apresentado, ao longo dos anos, diferentes conceitos para o que sejam os direitos da personalidade. Vale dizer, que de início, a contrario sensu, já se negou à existência dos direitos da personalidade, do que aliás, Savigny foi expoente, sob a argumentação de que não podia haver direito do homem sobre a própria pessoa, porque isso justificaria, em última análise, o cometimento de suicídio (BITTAR, 1995). Entretanto, prospera atualmente, o reconhecimento concreto desses direitos que pelo entendimento doutrinário dominante (2), pertencem à categoria dos direitos subjetivos.
De Cupis, autor italiano, de um dos mais consagrados trabalhos sobre o tema, também assim os considera, afirmando, que as entidades das quais a ‘ossatura (4)’ da personalidade é destinada a revestir-se, são, precisamente, direitos subjetivos, "cuja a função, relativamente à personalidade, é especial, constituindo o minimumnecessário e imprescindível ao seu conteúdo" (1961, p. 17). São, o que o autor denomina de direitos essenciais, que constituem a medula da personalidade, sem os quais a personalidade restaria uma susceptibilidade completamente irrealizada, privada de todo seu valor concreto. Todavia, o mesmo autor, considera que os direitos da personalidade constituem no sistema dos direitos subjetivos, uma categoria autônoma, que deriva do caráter de essencialidade que lhes é próprio.
Em verdade, podemos afirmar que ainda hoje, não existe, um conceito completo e preciso do que sejam os direitos da Personalidade, o que decorre das divergências entre os doutrinadores com respeito à sua própria existência, à sua natureza, à sua extensão e à sua especificação; do caráter relativamente novo de sua construção teórica; da ausência de uma conceituação global e definitiva; de seu enfoque, sob ângulos diferentes, pelo direito positivo (público, de um lado, como liberdades públicas; privado, de outro, como direitos da personalidade), o que lhe imprime feições e disciplinações distintas (BITTAR, 1995).
No entanto, é relevante destacar ainda, o conceito atribuído por Simon Carrejo, que assevera:
En el lenguaje jurídico actual la expresión ‘derechos de la personalidad’ tiene significado particular, referido a algunos derechos cuya función se relaciona de modo más directo con la persona humana, pues se dirigen a la preservación de sus más íntimos e imprescindibles intereses. En efecto, esos derechos constituyen un mínimo para asegurar los valores fundamentales del sujeto de derecho: sin ellos, la personalidad quedaría incompleta e inperfecta, y el indivíduo, sometido a la incertidumbre en cuanto a sus bienes jurídicos fundamentales. (172, p. 299)
Por assim dizer, a doutrina e a jurisprudência buscam, constantemente, baseando-se nos vários Direitos da Personalidade existentes e nos que surgem diariamente, encontrar um conceito que defina, de uma forma clara, objetiva e completa, do que sejam os direitos da personalidade, que poderíamos afirmar, em poucas palavras, sem a intenção de adotar uma definição precisa, se constituem em direitos essenciais ao exercício da dignidade da pessoa humana.
A discussão doutrinária resiste também, quanto à natureza dos direitos da personalidade, de serem ou não direitos inatos (direitos da própria pessoa), o que decorre, principalmente, do emprego de diversos termos, para designar esses direitos, que variam conforme o autor e a tese por ele adotada.
Para De Cupis e outros positivistas, "não é possível denominar os direitos da personalidade como ‘direitos inatos’, entendidos no sentido de direitos respeitantes, por natureza à pessoa" (1961, p. 18), até porque como afirma ainda o autor italiano, com as modificações sociais, modifica-se também o âmbito e os valores dos chamados direitos essenciais à personalidade. Obviamente, defendem pois, os positivistas devem ser incluídos, como direitos da personalidade, apenas àqueles reconhecidos pelo Estado, que lhes reveste de obrigatoriedade e cogência.
Já os naturalistas, como Limongi França, por sua vez, sustentam a impossibilidade de limita-los positivamente, na medida em que constituem faculdades inerentes à condição humana, porquanto, na definição, não raro repetida, deste doutrinador "direitos da personalidade dizem-se as faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim da sua projeção essencial no mundo exterior" (1994, p. 1033).
No mesmo diapasão afirma, Bittar, a seu turno, que os direitos da personalidade constituem direitos inatos, correspondentes às faculdades normalmente exercidas pelo homem, relacionados a atributos inerentes à condição humana, cabendo ao Estado apenas reconhecê-los e sancioná-los em um ou outro plano do direito positivo – a nível constitucional ou a nível de legislação ordinária – e dotando-os de proteção própria, conforme o tipo de relacionamento a que se volte, a saber: contra o arbítrio do poder público ou às incursões de particulares (1995, p. 07).
Szaniawsaki (1993), por sua vez, também prefere enquadrar os direitos da personalidade dentro do conceito de um direito natural, justamente por apoiarem-se na natureza das coisas.
Posicionamo-nos neste sentido, de que os direitos da personalidade transcendem ao direito positivado, porquanto são direitos inerentes à condição humana e como tal não podem ser taxados ou enumerados de forma limitativa, pois a sociedade evolui e a tecnologia progride, a passos largos, no que não lhe acompanha o direito positivado, com descobertas que fazem surgir novas formas de agressão a personalidade humana, que reclama igualmente novas formas de proteção e de fazer cessar essas ameaças.
Desse modo, poderíamos dizer que os direitos da personalidade não constituem um rol limitativo de direitos, um depende do outro e não existem em separados, sendo inesgotáveis, na medida em que inerentes a condição humana que esta atrelada as mudanças sociais e tecnológicas introduzidas com o passar dos tempos. Consoante afirma Jabur, em recente trabalho sobre o tema, "os direitos da personalidade são, diante de sua especial natureza, carentes de taxação exauriente e indefectível. São todos indispensáveis ao desenrolar saudável e pleno das virtudes psicofísicas que ornamentam a pessoa" (2000, p. 28).
Não pode-se por isso, permanecer a espera de que o legislador outorgue outras formas de proteção além das já previstas, não é o caso concreto que deve moldar-se a lei, e sim esta, por sua interpretação hermenêutica, ao fato colocado sobre apreciação, e isto cabe a jurisprudência, que com vistas aos princípios gerais do direito, deve criar formas de amplamente proteger e repelir as agressões aos direitos da personalidade, uma vez que o objetivo maior, é sem dúvida, o respeito e o cumprimento da dignidade da pessoa humana em todos os seus aspetos e plenitude.
Na verdade, o fato é, que reconhecidos como direitos inatos ou não, os direitos da personalidade se constituem em direitos mínimos que asseguram e resguardam a dignidade da pessoa humana e como tais devem ser previstos e sancionados pelo ordenamento jurídico, não de forma estanque e limitativa, mas levando-se em consideração o reconhecimento de um direito geral de personalidade (5), a que se remeteriam todos os outros tipos previstos ou não no sistema jurídico. Por certo, "a tipificação dos direitos da personalidade deve ser entendida e operacionalizada em conjunto com a proteção de um direito geral de personalidade (um e outro se completam). Onde não houver previsão tipificada, o operador do direito leva em consideração a proteção genérica" (CORTINO JUNIOR, 1998, p. 47).
Segundo leciona Netto Lôbo, a Constituição brasileira, "prevê a cláusula geral de tutela da personalidade, que pode ser encontrada no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1.o, III)" (2001, p. 08). Dignidade, na sábia formulação de Immanuel Kant, é tudo aquilo que não tem preço. "No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se por em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma coisa está acima de todo o preço, e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade" (1986, p. 77).
A existência de um direito geral de personalidade nada mais é que o reconhecimento de que os direitos da personalidade constituem uma categoria dirigida para a defesa e promoção da pessoa humana, "a rigor, a lógica fundante dos direitos da personalidade é a tutela da dignidade da pessoa humana" (TEPEDINO, 2003, p. 37), tal qual abordaremos neste trabalho. Enfim, a iserção da dignidade como princípio constitucional fundamental, contida em preceito introdutório do capítulo dos direitos fundamentais, significa, afinal, adoção mesmo de um dever geral de personalidade, cujo conteúdo é justamente a prerrogativa do ser humano de desenvolver a integralidade de sua personalidade, todos os seus desdobramentos e projeções, nada mais senão a garantia dessa sua própria dignidade (GODOY, 2001, p. 30).
Reconhece-se, pois, a existência de um direito geral de personalidade, que a considera um objeto da tutela jurídica geral, e defende a inviolabilidade da pessoa humana, em todos os seus aspectos, físico, moral e intelectual, e temos, ainda direitos especiais e específicos, correspondentes a esses aspectos parciais da personalidade (AMARAL, 2002). Trata-se de um direito mãe, como se vem cognominando (SZANIAWSKI, 1993), fonte de outros direitos que são, especificamente, os direitos da personalidade.
Por derradeiro, resumidamente pode-se afirmar, que os direitos da personalidade são direitos subjetivos, que tem por objeto os elementos que constituem a personalidade do seu titular, considerada em seus aspectos físico, moral e intelectual. São direitos inatos e permanentes, nascem com a pessoa e a acompanham durante toda sua existência, tendo como finalidade primordial à proteção das qualidades e dos atributos essenciais da pessoa humana, de forma a salvaguardar sua dignidade e a impedir apropriações e agressões de particulares ou mesmo do poder público.
Ao final, apenas, para não passar em branco, merece destaque, em rápidas pinceladas, pelo já exposto anteriormente, que o objeto dos direitos da personalidade é o bem jurídico da própria personalidade, como conjunto unitário, dinâmico e evolutivo dos bens e valores essenciais da pessoa no seu aspecto físico, moral e intelectual, destinados fundamentalmente ao exercício da tutela da dignidade da pessoa humana, que é a titular dos direitos da personalidade, como decorrência da garantia maior do direito à vida. Consoante acentua De Cupis, o modo de qualificação próprio dos direitos da personalidade, pelo qual eles revestem o carácter de proeminência relativamente aos outros direitos subjetivos e de essencialidade para a pessoa, deriva do seu ponto de referência objectivo, isto é, do seu objecto. Este objecto apresenta, de facto, uma dupla característica: 1) encontra-se em um nexo estritíssimo com a pessoa, a ponto de poder dizer-se orgânico; 2) identifica-se com os bens de maior valor susceptíveis de domínio jurídico (1961, p. 22).
1.3 Caracteres essenciais dos Direitos da Personalidade
Os direitos da personalidade são dotados de caracteres especiais, na medida que destinados à proteção eficaz da pessoa humana em todos os seus atributos de forma a proteger e assegurar sua dignidade como valor fundamental. Constituem, segundo Bittar, "direitos inatos (originários), absolutos, extrapatrimoniais, intransmissíveis, imprescritíveis, impenhoráveis, vitalícios, necessários e oponíveis erga omnes" (1995, p. 11).
No mesmo sentido aponta Borba, que pela circunstância dos direitos da personalidade estarem intimamente ligados à pessoa humana, possuem as seguintes características:
a) São inatos ou originários porque se adquirem ao nascer, independendo de qualquer vontade; b) são vitalícios, perenes ou perpétuos, porque perduram por toda a vida. Alguns se refletem até mesmo após a morte da pessoa. Pela mesma razão são imprescindíveis porque perduram enquanto perdurar a personalidade, isto é, a vida humana. Na verdade, transcendem a própria vida, pois são protegidos também após o falecimento; são imprescritíveis; c) são inalienáveis, ou mais propriamente, relativamente indisponíveis, porque em princípio, estão fora do comércio e não possuem valor econômico imediato; d) são absolutos, no sentido de que podem ser opostos erga omnes (apud VENOSA, 2002,p. 150).
De acordo com Francisco Amaral,
caracterizam-se os direitos da personalidade por serem essenciais, inatos e permanentes, no sentido de que, sem eles, não se configura a personalidade, nascendo com a pessoa e acompanhando-a por toda a existência. São inerentes à pessoa, intransmissíveis, inseparáveis do titular, e por isso se chamam, também, personalíssimos, pelo que se extinguem com a morte do titular. Conseqüentemente, são absolutos, indisponíveis, irrenunciáveis, imprescritíveis e extrapatrimoniais (2002, p. 247).
O Novo Código Civil Brasileiro, em seu art. 11, refere à intransmissibilidade, à irrenunciabilidade e a impossibilidade de limitação voluntária pelo seu titular, que pode ser entendida, como indisponibilidade, pois a limitação apenas pode ocorrer por ato de disposição, que no entanto, não podem ser vistos como únicos caracteres essenciais, posto que assim, como o rol de direitos da personalidade juridicamente tutelados pelo Código, seus caracteres não se limitam aos previstos neste diploma legal, devendo ser levado em consideração a construção doutrinária e jurisprudencial sobre a matéria.
Limitamo-nos a ratificar os caracteres já reproduzidos e consagrados pela doutrina dos direitos da personalidade, aduzindo que são inatos,ou seja, consoante Del Rio, "son derechos inherentes a la persona, en cuanto se encuentran necesariamente vinculados a la persona, razón por cual se lês denomina derechos personalísimos o de la personalidad" (2000, p. 244), indispensáveis e irrenunciáveis, posto que inerentes à condição humana, e necessários à existência da pessoa, bastando o nascimento com vida para que passem a existir, todavia, a legislação e doutrina consagram tais direitos aos nascituros, sob o argumento de que a proteção à personalidade inicia-se, em verdade, com a concepção e se perfectibiliza, com o nascimento com vida. Vale dizer ainda, que os direitos da personalidade não podem serem eliminados por vontade do seu titular.
Da mesma forma, são indisponíveis e intransmissíveis, na medida que não podem ser disponibilizados ou transmitidos aos demais. "Nem o ordenamento jurídico pode consentir que o indivíduo de despoje daqueles direitos que, por corresponderem aos bens mais elevados, tem caráter de essencialidade. Os direitos da personalidade estão subtraídos à disposição individual tanto como a própria personalidade", como frisa de Cupis (19961, p. 48)
Segundo Pontes de Miranda, "a intransmissibilidade deles é resultante da infungibilidade mesma da pessoa e da irradiação de efeitos próprios (...), nem os poderes contidos em cada direitos de personalidade, ou seu exercício, são suscetíveis de ser transmitidos ou por outra maneira outorgados" (2000, p. 32). Neste sentido, são singulares, ou seja, próprios de cada pessoa, em que pese alguns estudiosos os qualificarem como relativamente indisponíveis, como Jabur, para quem "a fruição e a exploração de algumas de suas faculdades encontra licitude, por não ofenderem a preservação do direito de que emanam" (2000, p. 55).
Todavia, o que efetivamente se pode dispor e transmitir é o aspecto patrimonial de cada um deles, como ocorre com a proteção outorgada ao patrimônio pessoal do morto, não é que se estenda a personalidade em seu aspecto jurídico após a morte, "mas porque é fundamental para a agregação social que seja resguardada a personalidade psíquica, enquanto patrimônio pessoal daquele que feneceu" (CASTRO, 2002, p. 72). Por assim dizer, são também, vitalícios (perduram por toda a vida) e imprescritíveis, podendo ser (suas ofensas) reclamados após a morte de seu titular, por quem a lei atribua tal legitimidade.
Ainda, pode-se afirmar que são, inalienáveis, impenhoráveis e extrapatrimoniais, vez que inadmitem qualquer apreciação pecuniária, não podendo, seu titular transmiti-los a outrem, e em regra, serem objeto de comercio, não se constituindo em patrimônio econômico, embora alguns possam ser objeto de negócio jurídico patrimonial, sendo que "as indenizações que ataques a eles podem motivar, de índole moral, são substitutivos de um desconforto, mas não se equiparam à remuneração. Apenas, no sentido metafórico e poético podemos afirmar que pertencem ao patrimônio moral de uma pessoa" (VENOSA, 2002, p. 151).
É necessário, portanto, desvincular a existência do direito como mero protetor de interesses patrimoniais, para posta-lo como protetor da pessoa humana. A proteção dos direitos da personalidade não pode assegurar somente a certeza da possibilidade de obtenção de ressarcimento patrimonial, uma vez configurada a lesão, mas precisamente a efetivação da dignidade da pessoa humana com vistas a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.
E, finalmente, são absolutos e de tal maneira oponíveis erga omnes,implicando a todos abstratamente considerados um dever geral de abstenção ou omissão, que se caracteriza pela inércia de seu titular. A rigor, a natureza extrapatrimonial dos direitos da personalidade e a circunstância de serem inatos e essenciais à realização da pessoa resultam em características que os singularizam e os dotam de critérios que os tornam essenciais, na medida que sem os quais a dignidade humana não se concretiza. "A cada pessoa não é conferido poder de dispô-los, sob pena de reduzir sua condição humana; todas as demais pessoas devem abster-se de violá-los" (LÔBO, 2001, p. 10).
Deste modo, nas palavras de Venosa, "ninguém pode, por ato voluntário, dispor de sua privacidade, renunciar a liberdade, ceder seu nome de registro para utilização por outrem, renunciar ao direito de pedir alimentos" (2002, p. 151). Contudo, continua o mesmo autor, em critica ferrenha:
há, porém situações na sociedade atual que tangenciam a proibição. Na busca de audiência e sensacionalismo, já vimos exemplos de programas televisivos nos quais pessoas autorizam, que si vida seja cerceada e sua integralidade física seja colocada em situações de extremo limite de resistência, etc. Ora, não resta dúvida de que, nesses casos, os envolvidos renunciam negocialmente a direitos em tese irrenunciáveis. A sociedade e a tecnologia, mais uma vez, estão à frente da lei mais moderna (2002, p. 151).
Apesar disso, vale lembrar que todo aquele que se sentir lesado ou ameaçado em seus direitos da personalidade, pode exigir que cesse a ameaça ou a lesão, assim como pode reclamar indenização pelos danos sofridos, diante do que prescreve o art. 12, do Código Civil Brasileiro, e especialmente pelo que lhe assegura a Lei Maior deste País, quando prevê a dignidade da pessoa humana como fundamendo do estado democrático de direito brasileiro.

terça-feira, 14 de julho de 2009

F.PONTES JUS: Limites do efeito vinculante do STF

F.PONTES JUS: Limites do efeito vinculante do STF

Limites do efeito vinculante do STF

1. Introdução
O efeito vinculante foi introduzido no texto constitucional pela EC nº 3, em 17/03/93. Esta acrescentou o § 2º ao art. 102, estabelecendo este efeito apenas para as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC). Não obstante, a partir de então a jurisprudência do STF passou a conferi-lo também às Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI), em razão do caráter dúplice (ambivalente) destas ações.
Com a edição da Lei nº 9.868, em 10/11/99 e, posteriormente, com o advento da EC. nº 45, de 31/12/2004, o efeito vinculante foi estendido expressamente à ADI. [01]
2. Eficácia "erga omnes" vs efeito vinculante
Ab initio, faz-se necessário distinguir a eficácia "erga omnes" (força de lei) do efeito vinculante pois, apesar de serem institutos afins, não são idênticos. Segundo Gilmar Ferreira Mendes, a orientação que tem prevalecido é a de que o primeiro se refere à parte dispositiva da decisão, ao passo que o segundo, cujo objetivo é conferir maior eficácia às decisões do STF, assegura "força vinculante não apenas à parte dispositiva da decisão, mas também aos chamados fundamentos ou motivos determinantes". [02]
No que se refere às normas paralelas, o efeito vinculante tem o condão de impedir a aplicação de uma lei do Estado B ou C se uma lei de conteúdo semelhante do Estado A for declarada inconstitucional. O mesmo já não ocorre com a eficácia "erga omnes". [03]
3. O efeito vinculante no controle concentrado
3.1. Limites subjetivos
O efeito vinculante ocorre apenas em relação ao Poder Executivo e aos demais órgãos do Poder Judiciário.
Não atinge, portanto, o próprio STF que, em determinadas circunstâncias, poderá rever suas decisões. [04] Tampouco se aplica ao legislador que, em tese, poderá editar uma nova lei com conteúdo material idêntico ao do texto normativo declarado inconstitucional. [05]
O embasamento desta concepção reside na própria idéia de Estado Democrático de Direito, segundo a qual não se pode impedir o legislador de aprovar, a qualquer momento, um novo projeto de lei. As circunstâncias momentâneas podem e devem ser melhoradas, o que significa fazer frente a uma interminável tarefa de adaptação às mudanças sociais e políticas mediante novas decisões. Para isso, é necessário que sejam mantidas abertas todas as vias concebíveis de solução. [06]
Este entendimento tem ainda por finalidade preservar a relação de equilíbrio existente entre o tribunal constitucional e o legislador, evitando não apenas a sua redução a um papel subalterno, mas também a ocorrência do inconcebível "fenômeno da fossilização da constituição". [07]
A redação dada ao parágrafo único do art. 28 da Lei n. 9.868/99 ("... e efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal") e ao § 2º do art. 102 da Constituição ("... e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal") autoriza o entendimento de não vinculação do STF e do legislador.
O desrespeito à eficácia vinculante autoriza o uso da reclamação, que poderá ser proposta por todos aqueles que forem atingidos pela decisão contrária ao entendimento firmado pelo STF. [08]
3.2. Limites objetivos
A jurisprudência do STF tem admitido a possibilidade de reconhecimento, em nosso sistema de fiscalização abstrata de constitucionalidade, do fenômeno da "transcendência dos motivos" que embasaram a sua decisão, proclamando que o efeito vinculante se projeta para além do dispositivo, estendendo-se à própria ratio decidendi. [09]
Dessa forma, ocorreria uma transcendência sobre a parte dispositiva dos motivos que embasaram o aresto no âmbito do controle concentrado – seja em sede de liminar, seja na decisão de mérito –, assim como dos princípios por ele consagrados.
O fenômeno da transcendência reflete uma preocupação doutrinária com a força normativa da constituição – resultante de sua supremacia material e formal –, cuja preservação, em sua integralidade, necessita do reconhecimento de que a eficácia vinculante se refere não apenas à parte do dispositivo, mas estende-se também aos próprios fundamentos determinantes da decisão proferida pela Corte Suprema, especialmente quando consubstanciar uma declaração de inconstitucionalidade em sede de controle abstrato. [10]
4. O efeito vinculante no controle difuso
Se, no controle concentrado, a extensão dos efeitos vinculantes aos motivos determinantes da decisão e aos princípios por ela consagrados não é exatamente uma novidade, o mesmo não se pode dizer da utilização desta técnica no controle difuso.
Neste, os ministros do STF vêm aplicando tese fixada em precedente no qual se discutiu a inconstitucionalidade de lei emanada de ente federativo diverso daquele que elaborou a lei objeto do recurso extraordinário sob exame, impondo os fundamentos determinantes de um leading case até mesmo no controle de constitucionalidade de leis municipais. [11]
Este procedimento está embasado no caput e no § 1º-A do artigo 557 do Código de Processo Civil que possibilita ao relator julgar monocraticamente recurso interposto contra decisão que esteja em confronto com súmula ou jurisprudência dominante da Corte Suprema.
Ademais, a interpretação dada pelo STF possui especial relevância, na medida em que ele se constitui no "guardião da Constituição" (CRFB/88, art. 102, caput), a quem cabe dar a última palavra na descoberta do conteúdo e na fixação do alcance das normas constitucionais.
4.1. Suspensão pelo Senado
A extensão do efeito vinculante ao controle difuso impõe a necessidade de se rediscutir o papel do Senado na suspensão da execução de leis declaradas inconstitucionais em decisão definitiva do STF (CRFB/88, art. 52, X).
Em artigo publicado na Revista de Informação Legislativa, parcialmente transcrito pelo Min. Celso de Mello na ADI nº 3.345-0/DF, Gilmar Ferreira Mendes defendeu a legitimidade de uma redefinição do papel do Senado no controle difuso, o qual passaria tão-somente a dar publicidade à decisão do STF, uma vez que esta já iria produzir efeitos gerais. [12]
4.2. Desobediência
À guisa de encerramento, vale observar que a desobediência à decisão do STF autoriza o uso da reclamação (CRFB/88, art. 102, I, l), cujo efeito será a cassação da decisão. Esta medida poderá ser intentada por qualquer pessoa – particular ou não – que tenha sido atingida na sua esfera jurídica por decisões de magistrados, tribunais ou da Administração Pública.
Não obstante, cumpre-se advertir que só ocorre uma afronta ao efeito vinculante da "ratio decidendi", quando o provimento jurisdicional ou administrativo impugnado verse sobre a mesma questão jurídica, decidida em sentido oposto ao da decisão invocada como paradigma. Caso as situações sejam distintas, não é cabível a imposição da eficácia vinculante para além dos limites objetivos e subjetivos da ação na qual a decisão foi proferida. [13]
Notas
01Lei nº 9.868/99, art. 28, Parágrafo único. A declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme a Constituição e a declaração parcial de inconstitucionalidade sem redução de texto, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal. (g.n.)
CRFB/88, art. 102, § 2º. As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal, nas ações diretas de inconstitucionalidade e nas ações declaratórias de constitucionalidade produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. (g.n.)
02 Proposta de Emenda Constitucional n. 130, de 1992. In MARTINS, Ives Gandra da Silva et al. Controle concentrado de constitucionalidade, p. 337.
03 Ibidem.
04 STF – ADI nº 2675/PE, rel. Min. Carlos Velloso e ADI nº 2777/SP, rel. Min. Cezar Peluso
"O Tribunal, embora salientando a necessidade de motivação idônea, crítica e consciente para justificar eventual reapreciação de uma questão já tratada pela Corte, concluiu no sentido de admitir o julgamento das ações diretas, por considerar que o efeito vinculante previsto no § 2º do art. 102 da CF não condiciona o próprio STF, limitando-se aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo".(g.n.)
05 MARTINS, Ives Gandra da Silva et al. Controle concentrado de constitucionalidade, p. 335. Este o entendimento adotado também pela nossa Corte Suprema (STF – ADI nº 907, rel. Min. Ilmar Galvão; ADI nº 864, rel. Min. Moreira Alves). Em sentido oposto, Alexandre de Moraes entende que a decisão vincula inclusive o Poder Legislativo, que ficaria impedido de editar uma nova lei com preceitos idênticos (Direito constitucional, p. 627).
06 SIMON, Helmut. La jurisdicción constitucional. In: BENDA, Ernest et alii. Manual de derecho constitucional, p. 842.
07 STF – Rcl (Agr) nº 2617/MG, rel. Min. Cezar Peluso (informativo 386)
O Relator menciona que "as constituições, enquanto planos normativos voltados para o futuro, não podem de maneira nenhuma perder a sua flexibilidade e abertura. Naturalmente e na medida do possível, convém salvaguardar a continuidade dos standards jurisprudenciais: alterações de rota, decisões overruling demasiado repentinas e brutais contrastam com a própria noção de jurisdição. A percepção da continuidade como um valor não deve, porém, significar uma visão petrificada da jurisprudência ou uma indisponibilidade dos tribunais para atender às solicitações provenientes do ambiente". (g.n.)
08 STF – RTJ nº 187/151, rel. Min. Celso de Mello, Pleno.
09 STF – Rcl nº 1.987/DF, rel. Min. Maurício Corrêa.
10 STF – Rcl (MC) nº 2.986/SE, rel. Min. Celso de Mello.
11 STF – RE nº 197.917-8/SP, rel. min. Maurício Corrêa (06/04/2002)
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MUNICÍPIOS. CÂMARA DE VEREADORES. COMPOSIÇÃO. AUTONOMIA MUNICIPAL. LIMITES CONSTITUCIONAIS. NÚMERO DE VEREADORES PROPORCIONAL À POPULAÇÃO. [...] INCONSTITUCIONALIDADE, INCIDENTER TANTUM, DA NORMA MUNICIPAL. EFEITOS PARA O FUTURO. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL.
12 Segundo ele, "se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, esta decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este publique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa ‘força normativa’. Parece evidente ser essa a orientação implícita nas diversas decisões judiciais e legislativas acima referidas. (...) A não-publicação não terá o condão de impedir que a decisão do Supremo assuma a sua real eficácia". ( "O Papel do Senado Federal no Controle de Constitucionalidade: Um Caso Clássico de Mutação Constitucional", "in" Revista de Informação Legislativa, vol. 162/149-168, 163-166, 2004, Senado Federal).
13 Em outras palavras, é imprescindível que "a matéria de direito debatida no pronunciamento, cuja autoridade se alega ofendida, seja em tudo semelhante, senão idêntica, àquela sobre a qual se funda a decisão que teria desembocado em conclusão oposta" (STF – Rcl nº 3.626/PE, rel. Min. Cezar Peluso).

quinta-feira, 2 de julho de 2009

O Caso dos Exploradores de Cavernas

LON L. FULLER
Professor de “Jurisprudence” da Harvard Law School
O CASO DOS
EXPLORADORES
DE CAVERNAS
Tradução do original inglês e introdução por
PLAUTO FARACO DE AZEVEDO
Professor adjunto e pesquisador da Faculdade de Direito da UFRGS; doutor em direito
pela Universidade Católica de Louvain, Bélgica
Sergio Antonio Fabris Editor
Porto Alegre, 1976. Reimpresso: 1993.
2
Copyright, O. by HARVARD LAW REVIEW
Título do original
"THE CASE OF THE SPELUNCEAN EXPLORERS"
FICHA CATALOGRÁFICA
(Elaborada pela equipe da Biblioteca do Tribunal de Justiça do RS.)
O caso dos exploradores de cavernas. Tradução
do original inglês e introdução por Plauto
Faraco de Azevedo. Porto Alegre, Fabris, 1976.
77 p. 16cm.
1. Filosofia do direito. 2. Introdução à ciência
do direito. I. Azevedo, Plauto Faraco de,
trad. II. Título.
CDU 340.12
340.11
Fuller, Lon L
Índice para catálogo sistemático:
1. Introdução à ciência do direito 340.11 Filosofia
do direito 340.12
Reservados todos os direitos de publicação em
língua portuguesa.
Sergio Antonio Fabris Editor
R. Miguel Couto, 745 - Telefone (051) 233-2681 90850-050
Porto Alegre, RS - Brasil
ou Caixa Postal 4001
90631-970 Porto Alegre, RS - Brasil
3
IINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO
Nenhuma disciplina jurídica é tão problemática, tão suscetível de abordagens
diversas - o que, alias, a própria discussão que até hoje persiste quanto
a seu objeto testemunha - do que a Introdução à Ciência do Direito, e, no entanto,
nenhum ensino é tão fecundo e mesmo eventualmente tão fecundante
quanto aquele que se ministra aos que se iniciam no estudo do Direito. Por paradoxal
que à primeira vista possa parecer, é este o momento em que o aprendizado,
desde que convenientemente conduzido, pode penetrar de maneira
indelével nos espíritos, aguçando a curiosidade, levando o aluno a primeiro
ordenar as noções informes e esparsas que possui e, posteriormente, a complementá-
las, mercê do estudo e da meditação. Neste sentido, nada mais fascinante
ao professor do que participar deste processo formativo que não deve
conduzir a uma concepção reduzida, mas completa, em que o Direito seja percebido
e reconhecido dentro de uma totalidade cultural de que é a um tempo
quadro e produto.
Quer-se significar com isto que não se pode pretender exauri-lo na dogmática
jurídica e muito menos que se possa esta restringir ao conceptualismo
puro, sem dúvida muitas vezes atraente ao espírito, mas despido de importância
e mesmo nocivo - porque alienante - ao regramento da realidade social. É
de todo imperioso que a dogmática jurídica e a pesquisa em geral, representada
pela Filosofia, pela História, pela Sociologia Jurídica, pela Ciência Política (e
aqui a enumeração é meramente exemplificativa), guardem aquela íntima vinculação
sem a qual não se poderá verdadeiramente apreender o jurídico.
Dando por assente a premência deste relacionamento, pena de desvirtuar
o objeto do conhecimento buscado, tropeça-se, contudo, no ensino da Introdução
à Ciência do Direito, na dificuldade de comunicá-lo ao estudante, sobretudo
quando se cogita da variabilidade da noção de direito no curso da história.
Jusnaturalismo, historicismo, positivismo, "direito livre", realismo - (e aqui
também a enumeração não é evidentemente exaustiva) - e a correspectiva
atitude ou papel do juiz em conformidade com cada uma destas concepções,
ensejando o problema, não menos relevante, da criatividade maior ou menor
do Direito pela via jurisprudencial - tudo isto são noções que necessitam de
concretude, indispensável ao iniciante no estudo do Direito. Fecundada deste
modo sua inteligência, fácil lhe será, ao depois, alçar-se das noções apreendidas
aos grandes temas da Filosofia do Direito, disciplina tradicionalmente colocada
em etapa mais avançada nos currículos jurídicos.
Justamente na realização deste objetivo temos comprovado a importância
inestimável do trabalho do Professor Lon L. Fuller, da Universidade de Harvard
- 0 Caso dos Exploradores de Cavernas ("The Case of the Speluncean
Explorers"), que bem poderia levar o subtítulo de "Uma Introdução à Argumentação
Jurídica”.
Desde a primeira vez em que o utilizamos em aula, apresentando-o a
4
estudantes que recém transpunham os umbrais da Universidade, surpreendeunos
a profundidade de seu conteúdo, que se não revela em uma primeira leitura,
ainda que cuidadosa. Fazendo a sua exposição isenta de posições preconcebidas
e submetendoo à discussão, vimos os alunos ainda vacilantes esboçarem
alguns dos traços mais característicos dos votos, correspondentes a diferentes
posturas filosóficas, emitidos pelos juízes do Tribunal do Presidente
Truepenny. Daí a nossa decisão de traduzi-lo para o português, para que nossos
estudantes penetrassem desde logo nas abstrações jurídicas pela via da
concretude.
Conduzindo a discussão habilmente, sem nela influir, visando tãosomente
a descontrair os estudantes, dá-se-lhes a oportunidade de visualizarem
de modo crítico a posição para a qual propendem, penetrando, do mesmo
passo, na argumentação, nesta se adestrando, em consonância com os ensinamentos
de Chaim Perelman, da Universidade Livre de Bruxelas e de Theodor
Viehweg, da Universidade de Mogúncia, que só bem mais tarde virão a conhecer1.
Ademais, não haveria palavras para enaltecer a intuição do autor que
soube, em estilo ameno, trazer para dentro deste caso imaginário que lhe foi
sugerido por casos reais - Queen v. Dudley e Stephens (L. R. 14 Q. B. Div.
273; 1884) e United States v. Holmes (1 Wall. 1; 1842) - os mais atraentes e
importantes temas da teoria jurídica, mostrando, paralelamente, que os mesmos
problemas que preocupavam os homens da época de Péricles continuam
a afligir-nos nos dias que correm, entremostrando-se nos litígios da quotidiana
rotina dos tribunais. Como já em certo sentido escrevemos alhures, é no plano
dinâmico da interpretação e aplicação do Direito que se desvelam as suas
grandes questões. São os práticos - o advogado, o juiz, o consultor jurídico, o
representante do Ministério Público que, buscando solução aos casos concretos,
deparam com a possível inadequação das normas jurídicas aos fatos a que
são prepostas2. E apenas mediante adequada formação, que se deve iniciar
1 "Perelman combate a opinião de tantos filósofos que consideraram - e continuam considerando - que
toda forma de raciocínio que não se assemelhe ao matemático não pertence à lógica. Contra esta opinião
injustificada e caduca sustenta Perelman que há mesmo formas de raciocínio mais elevadas, que não
constituem propriamente cálculos nem tampouco podem ser formuladas como “demonstrações”, pertencendo,
em contrapartida, à argumentação". E é esta "precisamente o tipo de raciocínio empregado pelo
jurista... A tradição cartesiana, que busca acima de tudo a evidência, desdenha qualquer proposição que
não possua o caráter do óbvio, do indiscutível, do exato, do preciso. Todavia, esta concepção logicista ou
matematizante do pensamento é demasiadamente estreita, pois não abrange grande quantidade de raciocínios,
que não têm e nem podem ter forma demonstrativa... Mas sucede que a própria índole da deliberação
e da argumentação se opõem à evidência e à necessidade absoluta; porque não se delibera nos casos
em que a solução tem caráter de necessidade, como não se argumenta contra a evidência. A argumentação
tem seu sentido no verossímil, no plausível e no provável, escapando estes à certeza de um cálculo exato
de que resulte uma única solução justificável em termos absolutos... Já os cultores das ciências naturais
apenas reconhecem a evidência da intuição sensível, da experiência e da indução... Tanto a concepção
cartesiana quanto a dos cientistas empíricos mutilam o campo da razão, posto que lhe negam capacidade
para tratar dos domínios em que nem a dedução lógica nem a observação dos fatos podem fornecer-nos a
solução dos problemas. A aceitar-se esta circunscrição da razão em tais domínios, não nos restaria outro
recurso exceto o de neles entregar-nos às forças irracionais, a nossos instintos ou à violência". Perelman,
Chaim - De la justicia (De la justice) Trad. de Ricardo Guerra. Pref. de Luis Recasens Siches. México,
Universidad Nacional Autónoma de México, 1964, p. II-III.
2 Azevedo, Plauto Faraco de - Em que consiste a problemática do Direito Natural. Antigüidade e vastidão
do tema. Estudos Jurídicos, São Leopoldo, 5(12): 100, 1975.
5
nos primórdios do curso jurídico, é que poderão solver tais dificuldades, não
confundindo o Direito com a Lei, e nem esta com a Justiça.
Resta externar à Harvard Law Review o devido reconhecimento por haver
permitido esta tradução, cujos frutos, confiamos, hão de ser os mais profícuos.
Plauto Faraco de Azevedo
6
O CASO DOS EXPLORADORES DE CAVERNA
O Caso dos Exploradores de Cavernas Suprema Corte de Newgarth - Ano de 4300
Processados e condenados à morte pela forca, os acusados recorreram da decisão do
Tribunal do Condado de Stowfield à Suprema Corte de Newgarth. Os fatos em que se
louvou a sentença condenatória são os que a seguir enuncia o Presidente desse alto Tribunal
em seu voto.
Presidente Truepenny, C. J.
Os quatro acusados são membros da Sociedade Espeleológica - uma organização
amadorística de exploração de cavernas. Em princípios de maio do ano de 4299, penetraram
eles, em companhia de Roger Whetmore, à época também membro da Sociedade,
no interior de uma caverna de rocha calcária do tipo que se encontra no Planalto
Central desta Commonwealth. Já bem distantes da entrada da caverna, ocorreu um desmoronamento
de terra: pesados blocos de pedra foram projetados de maneira a bloquear
completamente a sua única abertura. Quando os homens aperceberam-se da situação
difícil em que se achavam, concentraram-se próximo à entrada obstruída, na esperança
de que uma equipe de socorro removesse o entulho que os impedia de deixar a prisão
subterrânea. Não voltando Whetmore e os acusados às suas casas, o secretário da Sociedade
foi notificado pelas famílias dos acusados. Os exploradores haviam deixado indicações,
na'sede da Sociedade, concernentes à localização da caverna que se propunham
visitar. A equipe de socorro foi prontamente enviada ao focal.
A tarefa revelou-se extremamente difícil. Foi necessário suplementar as forças
de resgate originais mediante repetidos acréscimos de homens e máquinas, que tinham
de ser transportados à remota e isolada região, o que demandava elevados gastos. Um
enorme campo temporário de trabalhadores, engenheiros, geólogos e outros técnicos, foi
instalado. O trabalho de desobstrução foi muitas vezes frustrado por novos deslizamentos
de terra. Em um destes, dez operários contratados morreram. Os fundos da Sociedade
Espeleológica exauriram-se rapidamente e a soma de oitocentos mil frelares, obtida
em parte por subscrição popular e em parte por subvenção legislativa, foi gasta antes
que os homens pudessem ser libertados, o que só se conseguiu no trigésimo segundo dia
após a sua entrada na caverna.
Desde que se soube que os exploradores tinham levado consigo apenas escassas
provisões e se ficou também sabendo que não havia substância animal ou vegetal na
caverna que lhes permitisse subsistir, temeu-se que eles morressem de inanição antes
que o acesso até o ponto em que se achavam se tornasse possível. No vigésimo dia a
partir da ocorrência da avalancha soube-se que os exploradores tinham levado consigo
para a caverna um rádio transistorizado capaz de receber e enviar mensagens. Instalouse
prontamente um aparelho semelhante no acampamento, estabelecendo-se deste modo
a comunicação com os desafortunados homens no interior da montanha. Pediram estes
que lhes informassem quanto tempo seria necessário para liberá-los. Os engenheiros
7
responsáveis pela operação de salvamento responderam que precisavam de pelo menos
dez dias, à condição que não ocorressem novos deslizamentos. Os exploradores perguntaram
então se havia algum médico no acampamento, tendo sido postos em comunicação
com a comissão destes, à qual descreveram sua condição e as rações de que dispunham,
solicitando uma opinião acerca da probabilidade de subsistirem sem alimento por
mais dez dias. O presidente da comissão respondeu-lhes que havia escassa possibilidade
de sobrevivência por tal lapso de tempo. O rádio dentro da caverna silenciou a partir daí
durante oito horas. Quando a comunicação foi restabelecida os homens pediram para
falar novamente com os médicos, o que conseguido, Whetmore, falando em seu próprio
nome e em representação dos demais, indagou se eles seriam capazes de sobreviver por
mais dez dias se se alimentassem da carne de um dentre eles. O presidente da comissão
respondeu, a contragosto, em sentido afirmativo. Whetmore inquiriu se seria aconselhável
que tirassem a sorte para determinar qual dentre eles deveria ser sacrificado. Nenhum
dos médicos se atreveu a enfrentar a questão. Whetmore quis saber então se havia
um juiz ou outra autoridade governamental que se dispusesse a responder à pergunta.
Nenhuma das pessoas integrantes da missão de salvamento mostrou-se disposta a assumir
o papel de conselheiro neste assunto. Whetmore insistiu se algum sacerdote poderia
responder àquela interrogação, mas não se encontrou nenhum que quisesse faze-lo. Depois
disto não se receberam mais mensagens de dentro da caverna, supondo-se (erroneamente
como depois se evidenciou) que as pilhas do rádio dos exploradores tinham -se
descarregado. Quando os homens foram finalmente libertados soube-se que, no trigésimo
terceiro dia após sua entrada na caverna, Whetmore tinha sido morto e servido de
alimento a seus companheiros.
Das declarações dos acusados, aceitas pelo júri, evidencia-se que Whetmore foi
o primeiro a propor que buscassem alimento na carne de um dentre eles, sem o que a
sobrevivência seria impossível. Foi também Whetmore quem primeiro propôs a forma
de tirar. a sorte, chamando a atenção dos acusados para um par de dados que casualmente
trazia consigo. Os acusados inicialmente hesitaram adotar um comportamento tão
desatinado, mas, após o diálogo acima relatado, concordaram com o plano proposto. E
depois de muita discussão com respeito aos problemas matemáticos que o caso suscitava,
chegaram por fim a um acordo sobre o método a ser empregado para a solução do
problema: os dados.
Entretanto, antes que estes fossem lançados, Whetmore declarou que desistia do
acordo, pois havia refletido e decidido esperar outra semana antes de adotar um expediente
tão terrível e odioso. Os outros o acusaram de violação do acordo e procederam ao
lançamento dos dados. Quando chegou a vez de Whetmore um dos acusados atirou-os
em seu lugar, ao mesmo tempo em que se lhe pediu para levantar quaisquer objeções
quanto à correção do lanço. Ele declarou que não tinha objeções a fazer. Tendo-lhe sido
adversa a sorte, foi então morto.
Após o resgate dos acusados e depois de terem permanecido algum tempo em
um hospital onde foram submetidos a um tratamento para desnutrição e choque emocional,
foram denunciados pelo homicídio de Roger Whetmore. No julgamento, depois de
ter sido concluída a prova, o porta-voz dos jurados (de profissão advogado) perguntou
ao juiz se os jurados podiam emitir um veredicto especial, deixando ao juiz dizer se, em
conformidade com os fatos provados, havia culpabilidade ou não dos réus. Depois de
alguma discussão, tanto o representante do Ministério Público quanto o advogado defensor
dos réus, manifestaram sua concordância com tal procedimento, o qual foi aceito
8
pelo juiz. Em um longo veredicto especial o júri acolheu a prova dos fatos como acima
a relatei e ainda que se, com fundamento nos mesmos, os acusados fossem considerados
culpados, deveriam ser condenados. Com base neste veredicto o juiz de primeira instância
decidiu que os réus eram culpados do assassinato de Roger Whetmore. Em conseqüência
sentenciouos à forca, não lhe permitindo a lei nenhuma discrição com respeito à
pena a ser imposta. Dissolvido o júri, seus membros enviaram uma petição conjunta ao
chefe do Poder Executivo pedindo que a sentença fosse comutada em prisão de seis meses.
O juiz de primeira instância endereçou uma petição similar à mesma autoridade.
Até o momento, porém, nada resolveu o Executivo, aparentemente esperando pela nossa
decisão no presente recurso.
Parece-me que, decidindo este extraordinário caso, o júri e o juiz de primeira
instância seguiram um caminho que era não somente correto e sábio mas, além disto, o
único que lhes restava aberto em face dos dispositivos legais. O texto da nossa lei é bem
conhecido: "Quem quer que intencionalmente prive a outrem da vida será punido com a
morte". N.C.S.A. (n.s.) § 12-A. Este dispositivo legal não permite nenhuma exceção
aplicável à espécie, embora a nossa simpatia nos incline a ter em consideração a trágica
situação em que esses homens foram envolvidos.
Em um caso desta natureza o princípio da clemência executiva parece admiravelmente
apropriado para mitigar os rigores da lei, razão por que proponho aos meus
colegas que sigamos o exemplo do júri e do juiz de primeira instância, solidarizandonos
com as petições que enviaram ao chefe do Poder Executivo. Há razão de sobejo
para acreditar que estes requerimentos de clemência serão deferidos, vindo como vêm
daqueles que estudaram o caso e tiveram a oportunidade de familiarizar-se cabalmente
com todos os seus aspectos. É atualmente improvável que o chefe do Poder Executivo
denegue estas solicitações, a menos que ele próprio fosse realizar investigações pelo
menos tão extensas como aquelas efetuadas em primeira instância, que duraram três
meses. A realização de tais investigações (que, de fato, equivaleriam a um novo julgamento
do caso) seria dificilmente compatível com a função do Executivo, como é normalmente
concebida. Penso que podemos, portanto, presumir que alguma forma de
clemência será concedida aos acusados. Se isto for feito, será realizada a justiça sem
debilitar a letra ou o espírito da nossa lei e sem se propiciar qualquer encorajamento à
sua transgressão.
Foster, J.
Espanta-me que o presidente do Tribunal, em um esforço para escapar às dificuldades
deste trágico caso, tenha adotado e proposto a seus colegas uma solução simultaneamente
tão sórdida e tão simplista. Eu acredito que há algo mais do que o destino
destes desafortunados exploradores em juízo neste caso; encontra-se em julgamento a
própria lei desta Commonwealth. Se este Tribunal declara que estes homens cometeram
um crime, nossa lei será condenada no tribunal do senso comum, inobstante o que aconteça
aos indivíduos interessados neste recurso de apelação. Pois, para que nós sustentemos
que a lei que fazemos observar e enunciamos nos compele a uma conclusão da qual
nos envergonhamos e da qual apenas podemos escapar apelando a uma exceção que se
encontra na dependência do capricho pessoal do chefe do Executivo, parece-me equiva9
ler a admitir-se que ela não pretende realizar a justiça.
No que me concerne, não creio que nossa lei conduza obrigatoriamente à monstruosa
conclusão de que estes homens são assassinos. Creio, ao contrário, que ela os
declara inocentes da prática de qualquer crime. Fundamenta-se a conclusão sobre duas
premissas independentes, cada uma das quais é por si própria suficiente para justificar a
absolvição dos acusados.
A primeira, é certo, é suscetível de oposição enquanto não for considerada de
modo imparcial. Afirmo que o nosso direito positivo, incluindo todas as suas disposições
legisladas e todos seus precedentes, é inaplicável a este caso e que este se encontra
regido pelo que os antigos escritores da Europa e da América chamavam "a lei da natureza"
(direito natural). Funda-se este entendimento na proposição de que o nosso direito
positivo pressupõe a possibilidade da coexistência dos homens em sociedade. Surgindo
uma situação que torne a coexistência impossível, a partir de então a condição que se
encontra subjacente a todos os nossos precedentes e disposições legisladas cessou de
existir. Desaparecendo esta condição, minha opinião é de que a coercibilidade do nosso
direito positivo desaparece com ela. Nós não estamos habituados a aplicar a máxima
cessante ratione legis, cessat et ipsa lex ao conjunto do nosso ordenamento jurídico,
mas creio que este é um caso em que esta máxima deve ser aplicada.
A proposição segundo a qual todo o direito positivo fundamenta-se na possibilidade
de coexistência dos homens parece insólita não porque a verdade que ela contém
seja estranha, mas simplesmente em razão de que se trata de uma verdade tão óbvia e
tão abrangente que raramente temos a ocasião de expressá-la em palavras. A semelhança
do ar que respiramos ela penetra de tal modo a nossa vida que nos esquecemos de sua
existência até que dela somos subitamente privados. Quaisquer que sejam os objetivos
buscados pelos vários ramos do nosso direito, mostra-nos a reflexão que todos eles estão
voltados no sentido de facilitar e de melhorar a coexistência dos homens e de regular
com justiça e eqüidade as relações resultantes de sua vida em comum. Quando a suposição
de que os homens podem viver em comum deixa de ser verdadeira, como obviamente
sucedeu nesta extraordinária situação em que a conservação da vida apenas tornouse
possível pela privação da vida, as premissas básicas subjacentes a toda a nossa
ordem jurídica perderam seu significado e sua coercibilidade.
Se os trágicos acontecimentos deste caso tivessem tido lugar a uma milha dos
nossos limites territoriais, ninguém pretenderia que nossa lei lhes fosse aplicada. Reconhecemos
que a jurisdição tem base territorial. As razões desse princípio não são de
nenhum modo óbvias e raramente são examinadas. Penso que esse princípio baseia-se
na suposição de que só é possível impor-se uma única ordem jurídica a um grupo de
homens se eles vivem juntos dentro dos limites de uma dada área da superfície da terra.
A premissa segundo a qual os homens devem coexistir em um grupo encontrase, portanto,
à base do princípio territorial, bem como de todo o direito. Pois bem, eu sustento que
um caso pode ser subtraído da esfera de abrangência coercitiva de uma ordem jurídica
tanto por razões de ordem moral quanto por razões de ordem geográfica. Atentando aos
propósitos do direito e do governo e às premissas subjacentes a nosso direito positivo,
concluímos que estes homens, quando tomaram sua trágica decisão, estavam tão distantes
de nossa ordem jurídica como se estivessem a mil milhas além de nossas fronteiras.
Mesmo em um, sentido físico, sua prisão subterrânea estava separada dos nossos tribunais
è dos nossos oficiais de justiça por uma sólida cortina de rocha que só pôde ser
10
removida depois dos maiores dispêndios de tempo e de esforço.
Concluo, portanto, que no momento em que Roger Whetmore foi morto pelos
réus, eles se encontravam não em um "estado de sociedade civil" mas em um "estado
natural", como se diria na singular linguagem dos autores do século XIX. A conseqüência
disto é que a lei que lhes é aplicável não é a nossa, tal como foi sancionada e estabelecida,
mas aquela apropriada a sua condição. Não hesito em dizer que segundo este
princípio eles não são culpados de qualquer crime.
O que estes homens fizeram realizou-se em cumprimento de um contrato aceito
por todos e proposto em primeiro lugar pela própria vítima. Desde o momento em que
se evidenciou que a situação extraordinariamente difícil em que se achavam tornava
inaplicável os princípios_ usuais à regulação das relações entre os homens, tornou-se
necessário para eleselaborar, por assim dizer, uma nova constituição apropriada a sua
peculiar situação.
Tem sido reconhecido desde a antigüidade que o princípio fundamental do direito
ou governo deve ser encontrado na noção de contrato ou convênio. Pensadores antigos,
especialmente durante o período que medeia entre 1600 e 1900, tinham por hábito
estabelecer as bases do próprio governo em um suposto contrato social. Os céticos ressaltaram
que esta teoria contradizia os - fatos históricos conhecidos e que não havia nenhuma
evidência científica capaz de apoiar a noção de que qualquer governo em qualquer
tempo tivesse sido estabelecido em conformidade com esta teoria. Os moralistas
replicaram que, se o contrato era -uma ficção do ponto de vista histórico, esta noção
fornecia a única justificação ética sobre que os poderes do governo, inclusive aquele de
privar da vida, podia ser fundado. Os poderes do governo só podem ser justificados moralmente
tendo como razão de ser a circunstância de que homens razoáveis por-se-iam
de acordo e os aceitariam se se vissem frente à necessidade de construir novamente alguma
ordem capaz de tornar possível a vida em comum.
Felizmente, porém, as perplexidades que assediavam os antigos não atingem
nosso país. É fato historicamente comprovado que nosso governo foi fundado mediante
um contrato livremente assentido. A prova arqueológica é conclusiva no sentido de que
no período subseqüente à Grande Espiral os sobreviventes da hecatombe voluntariamente
reuniram-se e redigiram uma carta política. Escritores sofistas tem questionado o poder
desses remotos contratantes de obrigar futuras gerações, mas permanece o fato de
que nosso governo remonta em uma linha ininterrupta àquela constituição original.
Se portanto nossos verdugos têm o poder de pôr fim à vida dos homens, se nossos
oficiais de justiça tem o poder de determinar o despejo dos locatários em mora, se
nossa polícia tem o poder de encarcerar o pândego embriagado, estes poderes encontram
sua justificação moral naquele contrato originário celebrado pelos nossos antepassados.
Se nós não podemos encontrar fonte mais elevada para nossa ordem jurídica, que
outra mais alta deveríamos esperar que estes infortunados famintos estabelecessem para
o ordenamento que adotaram para si próprios?
Acredito que a linha de argumentação que termino de expor não admite nenhuma
contestação racional. Dou-me conta que ela será provavelmente recebida com uma
certa inquietação por muitos que venham a lê-la, os quais inclinar-se-ão a suspeitar que
algum sofisma oculto deve encontrar-se à base de uma demonstração que conduz a tan11
tas conclusões tão pouco comuns. A fonte desta intranqüilidade é, no entanto, fácil de
identificar. As condições usuais da existência nos inclinam a considerar a vida humana
um valor absoluto, que não pode ser sacrificado em nenhuma circunstância. Há muito
de ilusório nesta concepção, mesmo quando aplicada às relações normais ocorrentes na
vida social. Tivemos um exemplo desta verdade no próprio caso que ora examinamos.
Dez trabalhadores morreram' no trabalho de remoção das rochas à entrada da caverna.
Não sabiam os engenheiros e os funcionários públicos que dirigiam a operação de salvamento
que os esforços que estavam empreendendo eram perigosos e envolviam um
sério risco para as vidas dos trabalhadores que os estavam executando? Se é justo que
estas dez vidas tenham sido sacrificadas para salvar as dos cinco exploradores, a que
título diremos ter sido injusto que estes exploradores executassem um acordo para salvar
quatro vidas em detrimento de uma?
Qualquer rodovia, túnel ou edifício que nos projetamos envolve um risco à vida
humana. Tomando estes projetos em conjunto podemos calcular com certa precisão
quantas mortes a sua construção irá demandar; os estatísticos podem dizer o custo médio
em vidas humanas de mil milhas de uma rodovia de concreto de quatro pistas. Entretanto,
deliberada e conscientemente incorremos neste risco e pagamos este custo na
suposição de que os valores resultantes para aqueles que sobrevivem sobrepujam a perda.
Se estas coisas podem ser ditas em uma sociedade desenvolvendo-se normalmente
sobre a superfície da terra, o que se deverá dizer do suposto valor absoluto da vida humana
na situação de desespero em que os réus e seu companheiro Whetmore foram colhidos?
Com isto dou por concluído o primeiro fundamento do meu voto. O segundo vai
mais além, rejeitando hipoteticamente todas as premissas que formulei até o momento.
Concedo, para fins de argumentação, que eu esteja errado dizendo que a situação destes
homens os subtrai à incidência do nosso direito positivo, e suponho que nossas Leis
Consolidadas tenham o poder de penetrar quinhentos pés de rocha e impor-se sobre estes
homens famintos e amontoados em sua prisão subterrânea. Nestas condições é perfeitamente
claro que estes homens praticaram um ato que viola a expressão literal da lei
que declara que aquele que intencionalmente mata a outrem é um assassino. Mas um
dos mais antigos aforismas da sabedoria jurídica ensina que um homem pode infringir a
letra da lei sem violar a própria lei. Toda proposição dedireito positivo, quer contida em
uma lei ou em um precedente, deve ser interpretada de modo racional, segundo seu propósito
evidente. Isto é uma verdade tão elementar que é, a rigor, desnecessário alongarme
a este respeito. Os exemplos de sua aplicação são inumeráveis e se encontram em
todos os setores do ordenamento jurídico. No caso Commonwealth v. Staymore o acusado
foi condenado tendo em vista uma lei que considera delituoso estacionar os automóveis,
em certas áreas, por um período superior a duas horas. O réu tinha tentado retirar
o seu carro, mas foi impedido de faze-lo porque as ruas encontravam-se obstruídas
por uma demonstração política na qual ele não tomara parte, nem pudera prever. Este
Tribunal reformou a sentença, rejeitando a condenação, embora o caso se enquadrasse
perfeitamente dentro do enunciado literal da lei. Também no caso de Fehler v. Neegas
esteve perante este Tribunal, para ser interpretado, um dispositivo legal em que a palavra
"não" fora evidentemente transposta da posição em que devia estar. Esta transposição
encontrava-se em todas as redações sucessivas do dispositivo legal, não tendo, aparentemente,
sido notada pelos elaboradores ou pelos demais responsáveis pela legislação.
Embora ninguém fosse capaz de explicar como o erro ocorrera, era manifesto que,
tendo em conta as disposições da lei em seu conjunto, um erro tinha sido cometido, uma
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vez que a leitura literal de sua parte final tornava-a incompatível com tudo o que a precedia
e com o, objetivo deste texto tal como enunciado em seu preâmbulo. Este Tribunal
recusou-se a aceitar a interpretação literal da lei, e, de fato, retificou sua linguagem,
transpondo a palavra "não" para o seu lugar exato.
O dispositivo legal cuja interpretação devemos realizar nunca foi aplicado literalmente.
Há séculos estabeleceu-se que matar em legitima defesa é escusável. Não há
nada no texto legal que sugira esta exceção. Várias tentativas tem sido feitas para conciliar
a aceitação jurisprudencial da legítima defesa com o texto da lei, embora em minha
opinião não constituam senão engenhosos sofismas. A verdade é que a exceção em favor
da legitima defesa não é conciliável com as palavras da lei, mas somente com seu
propósito.
A verdadeira conciliação da excludente da culpabilidade em razão da legitima
defesa com o dispositivo legal segundo o qual constitui crime matar a outrem deve ser
encontrada na seguinte linha de raciocínio. Um dos principais objetivos subjacentes a
qualquer legislação penal é o de dissuadir os homens da prática do crime. Ora, é evidente
que se a lei tivesse declarado que o assassinato em legitima defesa constitui crime, tal
regra não poderia atuar de maneira preventiva. Um homem cuja vida é ameaçada repelirá
seu agressor não importa o que diga a lei. Atentando, pois, para os objetivos principais
da legislação penal, podemos seguramente declarar que esta lei não se destinava a
ser aplicada nos casos de legítima defesa.
Quando o fundamento lógico da excludente da legítima defesa é assim explicado,
torna-se evidente que, precisamente, a mesma razão é aplicável ao caso sub judice.
Se no futuro qualquer grupo de homens venha a encontrar-se na trágica situação dos
acusados, nós podemos estar certos de que sua decisão de viver ou morrer não será refreada
pelas normas do Código Penal. Portanto, se nós lermos este texto legal inteligentemente,
é manifesta a sua inadequação a este caso. A subtração desta situação da incidência
da lei justifica-se precisamente pelas mesmas considerações que foram apresentadas
pelos nossos colegas, séculos atrás, ao caso da legítima defesa.
Há os que protestam em altas vozes, dizendo tratar-se de usurpação judicial, sempre
que um tribunal, depois de analisar o propósito de uma lei, dá às suas palavras um
significado não imediatamente perceptível pelo leitor apressado, desatento aos objetivos
que ele busca atingir. Seja-me permitido dizer enfaticamente que eu aceito sem reserva
a proposição segundo a qual esta Corte deve obediência às leis do país e que ela exerce
seus poderes em subordinação à vontade devidamente expressa pela Câmara de Representantes.
A linha de raciocínio de que me utilizei acima não põe a questão de fidelidade
às disposições legais, embora possa talvez colocar a questão da distinção entre fidelidade
inteligente e fidelidade não inteligente. Ninguém deseja um empregado incapaz de
ler nas entrelinhas. A mais estúpida doméstica sabe que quando lhe é ordenado "descascar
a sopa e tirar a escuma dos tomates", sua patroa não quer significar o que está dizendo.
Ela também sabe que quando seu patrão lhe diz para "soltar tudo e vir correndo",
ele não tem em mente a possibilidade de que, neste momento, ela esteja salvando uma
criança prestes a afogar-se. Certamente nós temos o direito de esperar a mesma pequena
porção de inteligência de parte do Poder Judiciário. A correção de óbvios erros ou equívocos
legislativos não importa em suplantar a vontade do poder legislativo, mas em
faze-la mais efetiva. Nestas condições concluo que, sob qualquer aspecto que este caso
possa ser considerado, os réus são inocentes do crime de homicídio contra Roger
13
Whetmore e que a sentença de condenação deve ser reformada.
Tatting, J.
No cumprimento de meus deveres como juiz deste Tribunal, tenho sido normalmente
capaz de dissociar os aspectos emocionais e intelectuais de minhas reações e decidir
o caso sub judice inteiramente baseado no último. Examinando este trágico caso,
sinto todavia que me faltam os recursos habituais. Sob o aspecto emocional sinto-me
dividido entre a simpatia por estes homens e um sentimento de aversão e revolta com
relação ao monstruoso ato que cometeram. Alimentei a esperança de que seria capaz de
pôr estas emoções contraditórias de lado como irrelevantes e, assim, decidir o caso com
base em uma demonstração convincente e lógica do resultado reclamado por nossa lei.
Infelizmente não alcancei esta liberação. Ao analisar o voto que terminou de enunciar
meu colega Foster, sinto que está minado por contradições e falácias. Comecemos pela
sua primeira proposição: estes homens não estavam sujeitos à nossa lei porque não se
encontravam em um "estado de sociedade civil" mas em um "estado de natureza". Não
me parece claro porque isto seja assim, se em virtude da espessura da rocha que os aprisionou
ou porque estavam famintos ou porque tinham estabelecido uma "nova constituição",
segundo a qual as regras usuais de direito deviam ser suplantadas por um lanço de
dados. E outras dificuldades fazem-se sentir. Se estes homens passaram da jurisdição da
nossa lei para aquela da "lei da natureza", em que momento isto ocorreu? Foi quando a
entrada da caverna se fechou? Quando a ameaça de morte por inanição atingiu um grau
indefinido de intensidade? Ou quando o contrato para o lanço de dados foi celebrado?
Estas incertezas que emergem da doutrina proposta pelo meu colega são capazes de
causar reais dificuldades. Suponha-se, por exemplo, que um destes homens tenha feito
seu vigésimo primeiro aniversário enquanto estava aprisionado no interior da montanha.
Em que data teríamos que considerar que ele completou a maioridade - quando atingiu
os vinte e um anos, no momento em que se achava, por hipótese, subtraído dos efeitos
de nossas leis, ou quando foi libertado da caverna e voltou a submeter-se ao império do
que o meu colega denomina nosso "direito positivo”. Estas dificuldades, no entanto,
servem para revelar a natureza fantasiosa da doutrina que é capaz de originá-las.
Mas não é necessário explorar mais estas sutilezas para demonstrar o absurdo da
posição do meu colega. O senhor Ministro Foster e eu somos os juízes designados do
Tribunal de Newgarth, com o poder-dever de aplicar as leis deste país. Com que autoridade
nos transformamos em um tribunal da natureza? Se esses homens na verdade se
encontravam sob a lei natural, de onde vem nossa autoridade para estabelecer e aplicar
aquela lei? Certamente nós não estamos em um estado de natureza.
Mas, examinemos o conteúdo deste código de leis naturais que meu colega propõe
que adotemos e o apliquemos a este caso. Que código desordenado e odioso é este!
É um código em que as normas reguladoras dos contratos assumem maior importância
do que aquela referente ao homicídio. É um código segundo o qual um homem pode
estabelecer um contrato válido, conferindo poderes a seus semelhantes de comer seu
próprio corpo. Além disso, segundo os seus dispositivos, uma vez feito, tal contrato é
irrevogável, e, se uma das partes tenta rescindi-lo, as outras podem tomar a lei em suas
próprias mãos è executá-lo pela força - pois embora meu colega não refira, por conveni14
ência, o efeito da rescisão unilateral do contrato feita por Whetmore, esta é uma inferência
necessária de sua argumentação.
Os princípios expostos por meu colega contêm outras implicações que não podem
ser toleradas. Meu colega argumenta que quando os acusados lançaramse sobre
Whetmore e o mataram (nós não sabemos como, talvez golpeando-o com pedras), eles
estavam somente exercitando o direito que lhes fora conferido pelo contrato. Suponhase,
entretanto, que Whetmore tivesse escondido sob suas roupas um revólver e que,
quando visse os réus lançarem-se sobre si para trucidá-lo, os tivesse matado a tiros a fim
de salvar sua própria vida. O raciocínio de meu colega aplicado a estes fatos transformaria
Whetmore em um homicida, de vez que a excludente da legitima defesa teria que
ser-lhe denegada. Se seus atacantes estavam atuando legalmente procurando ocasionar
sua morte, então, evidentemente, ele não mais poderia excusar-se argumentando que
estava defendendo sua própria vida, da mesma forma que não poderia faze-lo um prisioneiro
condenado que abate o verdugo enquanto tenta legalmente colocar o nó em seu
pescoço.
Todas estas considerações tornam impossível para mim aceitar a primeira parte
dos argumentos de meu colega. Não posso nem aceitar sua noção de que estes homens
encontravam-se regidos por um código de leis naturais, que este Tribunal estaria obrigado
a aplicar-lhes, nem posso admitir as regras odiosas e desnaturadas que ele pretende
que este código contenha. Chego agora à segunda parte do voto do meu colega em que
ele busca demonstrar que os réus não violaram os dispositivos legais do N. C. S. A. (n.
s.) § 12-A. Neste ponto o raciocínio, ao invés de ser claro, parece-me nebuloso e ambíguo,
embora meu colega não pareça consciente das dificuldades inerentes às suas demonstrações.
A essência da argumentação de meu colega pode ser enunciada nos seguintes
termos: nenhuma lei, qualquer que seja seu texto, deveria ser aplicada de modo a contradizer
seu propósito. Um dos objetivos de qualquer norma penal é a prevenção. A aplicação
da lei, qualificando como crime matar a outrem, neste caso peculiar contradiria
seu propósito, pois é impossível crer que os dispositivos do código penal pudessem atuar
de maneira preventiva relativamente a homens colocados em face da alternativa de
viver ou morrer. O raciocínio segundo o qual esta exceção é encontrada na lei é, segundo
observa o meu colega, o mesmo que conduz à admissibilidade da excludente da legítima
defesa.
A primeira vista esta demonstração parece bastante convincente. A interpretação
feita por meu colega do fundamento lógico da excludente da legítima defesa encontrase,
de fato, em conformidade com a decisão deste Tribunal - Commonwealth v. Parry -
um precedente que encontrei estudando este caso. Embora o caso de Commonwealth v.
Parry pareça ter sido geralmente omitido nos textos e decisões subseqüentes, encontrase,
sem dúvida alguma, de acordo com a interpretação que meu colega deu à excludente
da legítima defesa.
Entretanto, seja-me agora permitido resumir rapidamente as perplexidades que
me ocorrem quando examino de modo mais atento o raciocínio de meu colega. É verdade
que uma lei deve ser aplicada segundo seu propósito e que um dos propósitos reconhecidos
da legislação penal é a prevenção. A dificuldade é que outros objetivos são
também imputados à lei penal. Afirma-se que um de seus propósitos é assegurar uma
15
descarga ordenada à instintiva necessidade de retribuição: Commonwealth v. Scape.
Também se afirma,que o seu escopo é a reabilitação do delinqüente: Commonwealth v.
Makeover. E outras teorias têm sido propostas. Supondo-se que nós devamos interpretar
uma lei à luz de seu propósito, o que deveremos fazer quando tiver vários propósitos ou
quando estes forem questionados?
Uma dificuldade similar é apresentada pela circunstância de que, embora haja
fundamento jurisprudencial para a interpretação dada por meu colega à excludente da
legitima defesa, também há outro critério jurisprudencial conferindo a esta excludente
um fundamento lógico diverso. Na verdade, ate ter tomado conhecimento da decisão no
caso de Commonwealth v. Parry eu nunca tinha ouvido a explicação dada por meu colega.
A doutrina ensinada em nossas escolas, memorizada por gerações de estudantes de
direito, diz o seguinte: a lei referente ao homicídio requer um ato "intencional". O homem
que atua para repelir uma ameaça agressiva a sua própria vida não age "intencionalmente",
mas em resposta a um impulso profundamente enraizado na natureza humana.
Suponho que dificilmente exista um jurista neste país que não esteja familiarizado
com esta linha de raciocínio, especialmente porque este é um dos pontos preferidos nos
exames visando o exercício da advocacia.
Mas a explicação familiar para a excludente da legítima defesa que terminei de
expor obviamente não pode ser aplicada por analogia aos fatos deste caso. Estes algum
auxílio inesperado talvez pudesse ter chegado. Dou-me conta de que esta observação
apenas reduz a distinção a uma questão de grau, sem que a destrua completamente. É
certamente verdade que o elemento de prevenção seria menor neste caso do que aquele
que normalmente decorre da aplicação da lei penal.
Ainda há uma outra dificuldade na proposta de meu colega Foster de estabelecer
uma exceção na lei em favor deste caso, embora novamente nenhuma dúvida transpareça
em seu voto. Qual será o alcance da exceção? No caso, os homens tiraram a sorte e a
própria vítima no início concordou com o que foi contratado. O que decidiríamos se
Whetmore tivesse recusado desde o começo a participar do plano? Permitir-se-ia que
uma maioria decidisse contra a sua vontade? Ou suponha-se que nenhum plano fosse
adotado e que' os outros simplesmente conspirassem para causar a morte de Whetmore,
e à guisa de justificativa dissessem que ele estava em condição física mais débil. Ou,
ainda, que um plano de seleção, baseado numa justificação diferente daquela aqui adotada,
fosse seguido, como por exemplo se os outros fossem ateus e insistissem que
Whetmore deveria morrer porque era o único que acreditava na vida além da morte.
Estes exemplos poderiam ser multiplicados, mas já se sugeriu o suficiente para revelar
as inúmeras dificuldades ocultas contidas no raciocínio de meu colega.
É claro que, refletindo, me dou conta de que estou lidando com um problema
que nunca mais ocorrerá, pois é improvável que outro grupo de homens seja levado a
cometer novamente a terrível ação que ora julgamos. De qualquer forma, continuando a
reflexão, mesmo se nós estamos certos de que um caso similar não ocorrerá novamente,
não é claro que os exemplos que dei demonstram a falta de qualquer princípio coerente
e racional na decisão que meu colega propõe? Não se deve aferir a correção de um princípio
pelas conclusões que ele acarreta, sem que se faça referencia a eventuais problemas
decorrentes de um litígio futuro? Entretanto, se assim é, porque nós juízes deste
Tribunal, discutimos tão amiúde se é provável que tenhamos que aplicar no futuro um
princípio que a solução do caso que ora julgamos reclama? É esta uma situação em que
16
uma linha de raciocínio, originariamente inadequada, chegou a sancionar-se por via de
um precedente, de modo que daí por diante estejamos obrigados a aplicá-la?
Quanto mais examino este caso e penso sobre ele, mais profundamente envolvido
emocionalmente me sinto. Minha mente fica enredada nas malhas das redes que eu
próprio arremesso para salvar-me. Creio que quase toda consideração que interesse à
solução do presente caso é contrabalançada por outra oposta, conduzindo em uma direção
também oposta. Meu colega Foster não me propiciou, nem eu pude descobrir por
mim próprio, nenhuma fórmula capaz de resolver as dúvidas que por todos os lados me
acossam.
Dei a este caso a maior atenção de que sou capaz. Tenho dormido muito pouco
desde que nos foi apresentado à decisão. Quando me sinto inclinado a aceitar o ponto de
vista de meu colega Foster, detém-me a impressão de que seus argumentos são intelectualmente
infundados e completamente abstratos. De outro lado, quando me inclino no
sentido de manter a condenação, choca-me o absurdo de condenar estes homens à morte
quando a salvação de suas vidas custou as de dez heróicos operários. Lamento que ao
Representante do Ministério Público tenha parecido adequado acusá-los de homicídio.
Se tivéssemos um dispositivo legal capitulando como crime o fato de comer carne humana,
esta teria sido uma acusação mais apropriada. Se nenhuma outra acusação adequada
aos fatos deste caso podia ser formulada contra os acusados, teria sido preferível,
penso, não tê-los pronunciado. Infelizmente, entretanto, estes homens foram processados
e julgados e, em decorrência disto, nós nos vemos envolvidos por este infeliz litígio.
Uma vez que me revelei completamente incapaz de afastar as dúvidas que me
assediam, lamento anunciar algo que creio não tenha precedentes na história deste Tribunal.
Recuso-me a participar da decisão deste caso.
Keen, J.
Eu gostaria de começar deixando de lado duas questões que não são da competência
deste Tribunal.
A primeira delas consiste em saber-se se a clemência executiva deveria ser concedida
aos réus caso a condenação seja confirmada. Esta é, porém, segundo o nosso
sistema constitucional, uma questão da competência do chefe do Poder Executivo e não
nossa. Desaprovo, portanto, aquela passagem do voto do presidente deste Tribunal em
que ele efetivamente dá instruções ao chefe do Poder Executivo acerca do que deveria
fazer neste caso e sugere alguns inconvenientes que adviriam se tais instruções não fossem
atendidas. Isto é uma confusão de funções governamentais - uma confusão em que
o judiciário deveria ser o último a incorrer. Desejo esclarecer que se eu fosse o chefe do
Poder Executivo, iria mais longe no sentido da clemência do que aquilo que lhe foi solicitado.
Eu concederia a estes homens perdão total, pois creio que eles já sofreram o suficiente
para pagar por qualquer delito que possam ter cometido. Quero que seja entendido
que esta observação é feita na minha condição privada, como cidadão que, em razão
de seu oficio, adquiriu um íntimo conhecimento dos fatos deste caso. No cumpri17
mento dos meus deveres como juiz não me incumbe dirigir instruções ao chefe do Poder
Executivo, nem tomar em consideração o que ele possa ou não fazer, a fim de chegar à
minha própria decisão que deverá ser inteiramente guiada pela lei desta Commonwealth.
'
A segunda questão que desejo deixar de lado diz respeito a decidir se o que estes
homens fizeram foi "justo" ou "injusto", "mau" ou "bom". Esta é outra questão irrelevante
ao cumprimento de minha função, pois, como juiz, jurei aplicar não minhas concepções
de moralidade, mas o direito deste país. Pondo esta questão de lado penso que
posso também excluir sem comentário a primeira e mais poética porção do voto do meu
colega Foster. O elemento de fantasia contido nos argumentos por ele desenvolvidos
revelou-se de maneira flagrante na tentativa um tanto solene do meu colega Tatting de
encará-los seriamente.
A única questão que se nos apresenta para ser decidida consiste em saber se os
réus, dentro do significado do N.C.S.A. (n.s.) § 12-A, privaram intencionalmente da
vida a Roger Whetmore. O texto exato da lei é o seguinte: "Quem quer que intencionalmente
prive a outrem da vida será punido com a morte". Devo supor que qualquer
observador imparcial, que queira extrair destas palavras o seu significado natural, concederá
imediatamente que os réus privaram "intencionalmente da vida a Roger Whetmore".
De onde, pois, surgem as dificuldades do caso e a necessidade de tantas páginas
de discussão a respeito do que deveria ser tão óbvio? As dificuldades, qualquer que seja
a forma angustiada por que se apresentem, todas convergem a uma única fonte, consistente
na indistinção dos aspectos legais e dos morais do presente litígio. Para dize-lo
claramente, meus colegas não apreciam o fato de exigir a lei escrita a condenação dos
acusados. Também a mim isto não causa prazer, mas, à diferença de meus colegas, eu
respeito as obrigações de um cargo que requer que se deixem as predileções pessoais de
lado, ao interpretar e aplicar a lei deste país. Todavia, naturalmente, meu colega Foster
não admite que ele seja motivado por uma aversão pessoal à lei escrita. Ao contrário,
ele desenvolve uma linha de argumento familiar, de acordo com a qual o Tribunal pode
desrespeitar o enunciado de uma lei, quando algo nela não contido, denominado seu
"propósito" , pode ser empregado para justificar o resultado que o Tribunal considera
adequado. Tendo em vista que se trata de uma longa controvérsia que há muito entretemos,
meu colega e eu, gostaria, antes de discutir a aplicação particular deste ponto de
vista aos fatos do presente litígio, de dizer algo acerca do fundo histórico deste controvertido
tema, bem como de suas aplicações relativamente ao direito e ao governo em
geral.
Tempo houve_ neste país, em que os juízes efetivamente legislaram livremente e
todos nós sabemos que durante esse período algumas de nossas leis foram praticamente
reelaboradas pelo Poder Judiciário. Isto ocorreu em um momento em que os princípios
aceitos pela ciência política não designavam de maneira segura a hierarquia e a função
dos vários poderes do Estado. Todos conhecemos a trágica conseqüência desta indistinção
através da breve guerra civil que resultou do conflito entre o Poder Judiciário, de
um lado, e os Poderes Executivo e Legislativo, de outro. Não há necessidade de enumerar
novamente aqui os fatores que contribuíram para esta malsinada luta pelo poder,
embora seja sabido que entre eles se incluíam o caráter pouco representativo da Câmara,
resultante de uma divisão do país em distritos eleitorais que não mais correspondiam à
18
real distribuição da população, bem como à forte personalidade e à vasta popularidade
daquele que era então o presidente do Tribunal. É suficiente observar que aqueles dias
passaram e que, em lugar da incerteza que então reinava, nos agora temos um principio
bem determinado consistente na supremacia do ramo legislativo do nosso governo. Desse
princípio decorre a obrigação do Poder Judiciário de aplicar fielmente a lei escrita e
de interpretá-la de acordo com seu significado evidente, sem referência a nossos desejos
pessoais ou a nossas concepções individuais da justiça. Não me cabe indagar se o princípio
que proíbe a revisão judicial das leis é certo ou errado, desejado ou indesejado;
observo simplesmente que este principio tornou-se uma premissa tácita subjacente a
toda ordem jurídica que jurei aplicar.
No entanto, embora o princípio da supremacia do Poder Legislativo tenha sido
aceito em teoria durante séculos, tão grande é a tenacidade da tradição profissional e da
força dos hábitos de pensamento estabelecidos, que muitos juízes ainda não se adaptaram
ao papel restrito que a nova ordem lhes impõe. Meu colega Foster pertence a este
grupo; sua maneira de lidar com as leis é exatamente aquela de um juiz vivendo no século
quarenta.
Nós estamos familiarizados com o processo segundo o qual se realiza a reforma
dos dispositivos legais que desagradam aos juízes. Qualquer um que tenha seguido os
votos escritos do ministro Foster terá oportunidade de ver sua utilização em qualquer
setor do direito. Pessoalmente, estou tão habituado com o processo que, se meu colega
se encontrasse eventualmente impedido, estou certo de que poderia escrever um voto
satisfatório em seu lugar sem qualquer sugestão sua, bastando conhecer se lhe agradaria
ou não o efeito da lei a ser aplicada ao caso em questão.
O processo de revisão requer três etapas. A primeira delas consiste em adivinhar
algum "propósito" único ao qual serve a lei, embora nenhuma lei em uma centena tenha
um propósito único e embora os objetivos de quase todas as leis sejam diferentemente
interpretados pelos diferentes grupos nelas interessados. A segunda etapa consiste em
descobrir que um ser mítico chamado "o legislador-, na busca deste "propósito" imaginado,
omitiu algo ou deixou alguma lacuna ou imperfeição em seu trabalho. Segue-se a
parte final e mais reconfortante da tarefa - a de preencher a lacuna assim criada. Quod
erat faciendum.
A inclinação de meu colega Foster para encontrar lacunas nas leis faz lembrar a
história, narrada por um antigo autor, de um homem que comeu um par de sapatos.
Quando lhe perguntaram se os havia apreciado, ele replicou que preferira os buracos.
Não é outro o sentimento de meu colega com respeito às leis; quanto mais buracos (lacunas)
elas tenham, mais ele as aprecia. Em resumo, não lhe agradam as leis.
Não se poderia desejar um caso melhor para ilustrar a natureza ilusória deste
processo de preenchimento de lacunas do que aquele ora pendente de julgamento. Meu
colega pensa que sabe exatamente o que se buscou ao declarar-se o assassinato um crime.
Segundo ele seria algo que se denomina "prevenção". Meu colega Tatting já mostrou
quanto é omissa esta interpretação. Mas penso que a dificuldade jaz mais profundamente.
Duvido muito que nossa lei, qualificando o assassinato como crime, tenha
realmente um "propósito" em qualquer sentido ordinário desta palavra. Antes de mais
nada, tal lei reflete uma convicção humana profundamente arraigada, segundo a qual o
assassinato é injusto e que algo deve ser feito ao homem que o comete. Se nós fôssemos
19
forçados a ser mais explícitos acerca do problema, provavelmente nos refugiaríamos nas
mais sofisticadas teorias dos criminologistas, as quais, por certo, não se encontravam na
mente dos nossos legisladores. Nós poderíamos também observar que os homens executariam
seu trabalho de maneira mais eficaz e viveriam mais felizes se fossem protegidos
contra a ameaça de agressão violenta. Tendo em mente que as vítimas de homicídios
são freqüentemente pessoas desagradáveis, nós poderíamos ajuntar a sugestão de que a
eliminação de pessoas indesejáveis não deva ser uma função apropriada à iniciativa privada,
mas, ao revés, constituir um monopólio estatal. Tudo isto lembra-me um advogado
que, certa ocasião, argumentou perante este Tribunal que uma lei sobre o exercício
da medicina era uma boa coisa porque levaria à diminuição dos prêmios de seguro de
vida, eis que elevaria o nível geral de saúde. Há quem pretenda que o óbvio deve ser
explicado.
Se nós não sabemos o propósito do § 12A, como podemos dizer que haja uma
lacuna nele? Como podemos nós saber o que pensaram seus elaboradores acerca da
questão de matar homens para come-los? Meu colega Tatting revelou uma repulsão
compreensível, embora talvez um tanto exagerada, relativamente ao canibalismo. Como
podemos nós saber que seus remotos antepassados não sentiram a mesma repulsa em
um grau mais elevado? Os antropólogos afirmam que o temor sentido em relação a um
ato proibido pode crescer quando as condições de vida tribal criam tentações especiais à
sua prática: é o que ocorre com o incesto, que é mais severamente condenado entre aqueles
cujas relações comunitárias o tornam mais provável. Certamente, o período subseqüente
à Grande Espiral trazia consigo implícitas tentações à antropofagia. Talvez
fosse em virtude disso que nossos antepassados expressaram essa proibição de forma
tão larga e irrestrita. Tudo isto é, por certo, conjetura, mas fica suficientemente claro
que nem eu nem meu colega Foster sabemos qual seja o propósito do § 12-A. Considerações
similares às que acabei de delinear são também aplicáveis à excludente da legítima
defesa que desempenha um papel tão importante no raciocínio dos colegas Foster e
Tatting. É, sem dúvida, verdade que em Commonwealth v. Parry um ponto de vista expresso
incidentalmente, sem força de precedente, justificou esta exceção, presumindo-se
que o propósito da legislação penal é a prevenção. Também pode ser verdade que se
tenha ensinado a várias gerações de estudantes que a verdadeira explicação da excludente
reside na circunstância segundo a qual um homem que atua em legítima defesa não
age "intencionalmente", e que os mesmos estudantes tenham sido considerados habilitados
ao exercício da advocacia repetindo o que os seus professores lhes ensinaram. Naturalmente,
pude rejeitar estas últimas observações como irrelevantes pela simples razão
que os professores e examinadores ainda não tem delegação de poderes para elaborar
nossas leis. Mas, insisto, o problema real é mais profundo. Tanto no que se refere à lei,
como no que respeita à exceção, a questão não está no suposto propósito da lei, mas no
seu alcance. No que concerne à extensão da legítima defesa, tal como tem sido aplicada
por este Tribunal, a situação é clara: ela se aplica aos casos de resistência a uma ameaça
agressiva à própria vida de uma pessoa. É, portanto, bastante claro que este caso não se
situa no âmbito da exceção, posto que é evidente que Whetmore não fez nenhuma ameaça
contra a vida dos réus.
O caráter essencialmente ardiloso da tentativa do meu colega Foster de encobrir
sua reformulação da lei escrita com uma aparência de legitimidade mostra-se tragicamente
no voto de meu colega Tatting. Neste, o juiz Tatting debate-se ardorosamente
para combinar o vago moralismo de seu colega com seu próprio sentimento de fidelidade
à lei escrita. O resultado desta luta não podia ser outro senão o que ocorreu - um
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completo fracasso no desempenho da função judicial. É de todo impossível ao juiz aplicar
uma lei tal como está redigida e, simultaneamente, refazê-la em consonância com
seus desejos pessoais.
Bem sei que a linha de raciocínio que terminei de expor neste voto não será aceitável
por aqueles que cogitam tãosomente dos efeitos imediatos de uma decisão e ignoram
as implicações que poderão advir no futuro em conseqüência de assumir o judiciário
o poder de criar exceções à aplicação da lei. Uma decisão rigorosa nunca é popular.
Juízes tem sido exaltados na literatura por seus ardilosos subterfúgios destinados a privar
um litigante de seus direitos nos casos em que a opinião pública julgava errado fazelos
prevalecer. Mas eu acredito que a exceção ao cumprimento das leis, levada a efeito
pelo Poder Judiciário, faz mais mal a longo prazo do que as decisões rigorosas. As sentenças
severas podem ate mesmo ter um certo valor moral, fazendo com que o povo
sinta a responsabilidade em face da lei, que, em última análise, é sua própria criação,
bem como relembrandolhe que não há nenhum princípio de perdão pessoal que possa
mitigar os erros de seus representantes.
Na verdade, irei mais longe e direi que os princípios por mim expostos são os
melhores para as nossas condições atuais; e, mais, que nós teríamos herdado um melhor
sistema jurídico dos nossos antepassados se estes princípios tivessem sido observados
desde o início. Por exemplo, com respeito à excludente da legítima defesa, se nossos
tribunais tivessem permanecido firmes na letra da lei, o resultado teria sido, sem dúvida
alguma, a sua revisão legislativa. Tal revisão teria suscitado a colaboração de cientistas
e psicólogos, e a regulamentação da matéria, daí resultante, teria tido um fundamento
compreensível e racional, ao invés da miscelânea de verbalismos e distinções metafísicas
que emergiram de seu tratamento judicial e acadêmico.
Essas conclusões finais estão, por certo, além dos deveres que devo cumprir
relativamente a este caso, mas as enuncio porque sinto de modo profundo que meus
colegas estão muito pouco conscientes dos perigos implícitos nas concepções sobre a
magistratura defendidas pelo meu colega Foster.
Minha conclusão é de que se deve confirmar a sentença condenatória.
Handy, J.
Ouvi com estupefação os angustiados raciocínios que este caso trouxe à tona.
Nunca deixo de admirar a habilidade com que meus colegas lançam uma obscura cortina
de legalismos sobre qualquer problema que lhes seja apresentado para decidir. Nesta
tarde ouvimos arrazoados sobre as distinções entre direito positivo e direito natural, a
letra e o propósito da lei, funções judiciais e executivas, legislação oriunda do judiciário
e do legislativo. Minha única decepção foi que ninguém levantou a questão da natureza
jurídica do contrato celebrado na caverna - se era unilateral ou bilateral, e se não se poderia
considerar que Whetmore revogou a sua anuência antes que se tivesse atuado com
fundamento nela.
O que é que todas essas coisas tem a ver com o caso? O problema que temos que
21
decidir é o que nós, como funcionários públicos, devemos fazer com esses acusados.
Esta é uma questão de sabedoria prática a ser exercida em um contexto, não de teoria
abstrata, mas de realidades humanas. Quando o caso é examinado sob essa luz, torna-se,
segundo me parece, um dos mais fáceis de decidir dentre os que já foram argüidos perante
este Tribunal.
Antes de enunciar minhas próprias conclusões acerca do mérito, eu gostaria de
discutir brevemente alguns dos problemas essenciais que o litígio traz à tona - questões
sobre as quais meus colegas e eu temos estado divididos desde que me tornei juiz.
Nunca fui capaz de convencê-los de que o governo é um assunto humano, e que
os homens são governados não por palavras sobre o papel ou por teorias abstratas, mas
por outros homens. Eles são bem governados quando seus governantes compreendem os
sentimentos e concepções do povo. E são mal governados quando não existe esta compreensão.
De todos os ramos do governo, é o Judiciário o que tem maiores possibilidades
de perder o contato com o homem comum. As razões para isto são, naturalmente, bastante
óbvias. Ao passo que as massas reagem diante de uma situação conforme ela se
apresenta em seus traços mais salientes, nós juízes dividimos em pequenos fragmentos
cada situação que nos é apresentada. Juristas são contratados pelos antagonistas a fim de
analisar e dissecar. Juízes e advogados rivalizam em ver quem é capaz de descobrir o
maior número de dificuldades e distinções em um só conjunto de fatos. Cada litigante
tenta encontrar casos reais ou imaginários, _que irão causar embaraço às demonstrações
do lado oposto. Para escapar a esta dificuldade, ainda outras distinções são inventadas e
introduzidas na situação. Quando um conjunto de fatos é exposto a tal espécie de tratamento
por um tempo suficiente, toda sua vida e essência tê-lo-á abandonado, dele não
restando senão um punhado de poeira. Percebo que, sem dúvida alguma, sempre que
haja regras e princípios abstratos, os juristas poderão fazer distinções. Até certo ponto
esta espécie de coisas que estou descrevendo é um mal necessário, ligado a qualquer
regulação formal dos negócios humanos. Todavia, penso que a área que realmente necessita
de tal regulação é grandemente superestimada. Há, naturalmente, algumas regras
de jogo fundamentais que devem ser aceitas como condição de existência do próprio
jogo. Eu incluiria entre elas aquelas relativas à regulação das eleições, à nomeação de
funcionários públicos e ao tempo de exercício nos respectivos cargos. Nestas matérias,
eu concedo que seja essencial certa restrição na discrição e na possibilidade de excepcionar,
certa adesão à forma, um certo escrúpulo quanto ao que cai e o que não cai na
esfera de incidência da norma.
Mas, fora destes domínios, acredito que todos os funcionários públicos, inclusive
os juízes, cumpririam melhor seus deveres se considerassem as formalidades e os
conceitos abstratos como instrumentos. Penso que deveríamos tomar como nosso modelo
o bom administrador, que adapta os métodos e princípios ao caso concreto, selecionando
dentre os meios de que dispõe os mais adequados à obtenção do resultado colimado.
A mais óbvia vantagem deste método de governo é que ele nos permite cumprir
nossas tarefas diárias com eficiência e senso comum. Minha adesão a esta filosofia tem,
entretanto, raízes mais profundas. Creio que apenas com o discernimento que ela propicia
podemos preservar a flexibilidade essencial se quisermos manter nossas ações em
22
uma conformidade razoável com os sentimentos daqueles que se acham submetidos à
nossa autoridade. Mais governos soçobraram e mais miséria humana foi causada pela
ausência deste acordo entre governantes e governados do que por qualquer outro fator
que se possa discernir na história. Desde o momento em que se introduz uma cunha entre
a massa do povo e aqueles que dirigem sua vida jurídica, política e econômica, a
sociedade é destruída. Então nem a lei da natureza de Foster, nem a fidelidade à lei escrita
de Keen, não servirão de mais nada.
Aplicando estas concepções ao caso sub judice, sua decisão se torna, conforme
referi, bastante fácil. A fim de demonstrar isso terei que divulgar certas realidades que
meus colegas, como pudico decoro, julgaram adequado omitir, ainda que delas tenham
tanta consciência quanto eu próprio.
A primeira delas é que este caso despertou um enorme interesse público tanto no
país quanto no exterior. Quase todos os jornais e revistas publicaram artigos a seu respeito;
colunistas partilharam com seus leitores informações confidenciais referentes ao
próximo passo do Poder Executivo; centenas de cartas aos editores foram publicadas.
Uma das grandes cadeias de jornais fez uma sondagem de opinião pública acerca da
questão - "que pensa você que a Suprema Corte deveria fazer com os exploradores de
cavernas?" Cerca de noventa por cento expressaram a opinião de que os acusados deveriam
ser perdoados ou deixados em liberdade, com uma espécie de pena simbólica. Portanto,
é perfeitamente claro o sentimento da opinião pública frente ao caso. Alias, poderíamos
tê-lo sabido sem a sondagem, com base no senso comum ou mesmo observando
que neste Tribunal há manifestamente quatro homens e meio, ou seja noventa por cento,
que partilham da opinião comum.
Isto torna óbvio não somente o que deveríamos, mas o que devemos fazer, se desejamos
preservar entre nós e a opinião pública uma harmonia razoável e decente. O
fato de declararmos estes homens inocentes não nos envolve em nenhum subterfúgio ou
ardil pouco digno. Tampouco é necessário qualquer principio de interpretação legal que
não esteja de acordo com o modo de proceder deste Tribunal. Certamente nenhuma pessoa
leiga pensaria que, absolvendo estes homens, nós tivéssemos desvirtuado a lei mais
do que nossos predecessores o fizeram quando criaram a excludente da legítima defesa.
Se uma demonstração mais detalhada do método seguido para harmonizar nossa decisão
com o dispositivo legal fosse julgada necessária, contertar-me-ia em fixar-me nos argumentos
desenvolvidos na segunda e menos fantasiosa parte do voto do meu colega Foster.
Estou convicto de que meus colegas se horrorizarão por eu ter sugerido que este
Tribunal leve em conta a opinião pública. Eles dirão que a opinião pública é emocional
e caprichosa, que se baseia em meias verdades e que ouve testemunhas que não estão
sujeitas a novo interrogatório. Eles dirão ainda que a lei cerca o julgamento de um caso
como este de cuidadosas garantias, destinadas a assegurar que a verdade será conhecida
e que qualquer consideração racional referente às possíveis soluções do caso será tomada
em consideração. Advertirão que todas estas garantias de nada servem se for permitido
que a opinião pública, formada fora deste quadro, tenha qualquer influência na decisão.
Mas detenhamo-nos imparcialmente em algumas das realidades da aplicação da
nossa lei penal. Quando um homem é acusado de ter cometido um crime há, de maneira
23
geral, quatro modos segundo os quais ele pode escapar da punição. Um deles consiste
na decisão do juiz, de acordo com a lei aplicável, de que ele não cometeu nenhum crime.
Esta é, por certo, uma decisão que tem lugar em uma atmosfera bastante formal e
abstrata. Mas consideremos os outros três modos segundo os quais ele pode escapar da
punição. Estes são: (I) uma decisão do Representante do Ministério Público não solicitando
a instauração do processo; (II) uma absolvição pelo júri; (III) um indulto ou comutação
da pena pelo Poder Executivo. Pode alguém pretender que estas decisões sejam
tomadas dentro de uma estrutura formal, rígida, de regras que impeçam o erro de fato,
excluam fatores emocionais e pessoais e garantam que todas as formalidades legais serão
observadas? É verdade que no caso do júri procuramos restringir suas deliberações
ao âmbito daquilo que é juridicamente relevante, mas não nos podemos iludir acreditando
que esta tentativa seja realmente bem sucedida. Normalmente, o caso de que ora nos
ocupamos deveria ter sido julgado pelo júri sob todos os seus aspectos. Se isto tivesse
ocorrido, podemos estar certos, de que teria havido uma absolvição ou pelo menos uma
divisão que teria impedido uma condenação. Se se tivesse dado instruções ao júri no
sentido de que a fome dos réus e o convênio que firmaram não constituem defesa à acusação
de homicídio, seu veredicto as teria quase que certamente ignorado, torcendo a
letra da lei mais do que qualquer um de nós seria tentado a fazer. É evidente que a única
razão que impediu que isto sucedesse foi a circunstância fortuita de ser o porta-voz do
júri um advogado. Seus conhecimentos capacitaram-no a imaginar uma fórmula verbal
que permitisse ao júri furtar-se de suas usuais responsabilidades.
Meu colega Tatting expressa contrariedade por não ter o Representante do Ministério
Público decidido o caso por si, abstendo-se de requerer a instauração do processo.
Estrito como é no cumprimento das exigências da teoria jurídica, ficaria satisfeito
em ver o destino destes homens decidido fora do Tribunal pelo Representante do Ministério
Público, fundado no senso comum. O presidente do Tribunal, de outro lado, desejaria
que a aplicação do senso comum ficasse para o final, embora, como Tatting, não
queira dele participar pessoalmente.
Isto me leva à parte conclusiva de minhas observações, referente à clemência
executiva. Antes de discutir este tópico diretamente quero fazer uma observação conexa
acerca da sondagem de opinião pública. Como disse, noventa por cento das pessoas
pretende que a Suprema Corte deixe os acusados em inteira liberdade ou que se lhes
aplique uma pena meramente nominal. Os dez por cento restantes constituem um grupo
de composição singular com as mais curiosas e divergentes opiniões. Um dos nossos
especialistas universitários fez um estudo deste grupo e descobriu que seus membros
dividem-se em padrões determinados. Uma porção substancial deles é assinante de excêntricos
jornais de circulação limitada, os quais deram aos seus leitores uma versão
destorcida dos fatos em causa. Alguns pensam que "espeleólogo" significa "canibal" e
que a antropofagia constitui um principio adotado pela Sociedade. Mas, o ponto sobre
que desejo chamar a atenção é este: embora quase todas as variedades e matizes de opiniões
concebíveis estivessem representadas neste grupo, não havia, tanto quanto sei,
ninguém nele, nem no grupo majoritário dos noventa por cento, que dissesse: "penso
que seria de bom alvitre que os tribunais condenassem estes homens à forca e que, em
seguida, outro poder do Estado os absolvesse". No entanto, esta é uma solução que de
certo modo dominou nossas discussões e que o presidente deste Tribunal propõe como
um caminho através do qual nós podemos evitar de cometer uma injustiça e ao mesmo
tempo preservar o respeito à lei. Pode o senhor Presidente estar certo de que, se ele está
preservando a moral de alguém, esta não é senão a sua própria, e não a do público, que
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nada sabe a respeito das distinções por ele empregadas. Menciono este problema porque
desejo enfatizar mais uma vez o perigo de nos perdermos nos esquemas de nosso próprio
pensamento e esquecer que estes esquemas freqüentemente não projetam a mais
tênue sombra sobre o mundo exterior.
Agora chego ao ponto mais decisivo deste caso. Um ponto conhecido de todos
nós neste Tribunal, embora meus colegas tenham julgado conveniente ocultá-lo sob suas
togas. Trata-se da probabilidade alarmante de que, se a solução do caso for deixada ao
Chefe do Poder Executivo, ele se recusará a perdoar estes homens ou comutar sua sentença.
Como todos nós sabemos o Chefe do Poder Executivo é um homem hoje de idade
avançada e de princípios muito rígidos. O clamor público normalmente produz nele um
efeito contrário ao esperado. Como disse a meus colegas, acontece que a sobrinha de
minha esposa é íntima amiga de sua secretária. Fui informado por esta via indireta, mas,
segundo me parece, completamente fidedigna, que ele está firmemente determinado a
não comutar a sentença se nós julgarmos que estes homens transgrediram a lei.
Ninguém lamenta mais do que eu, a necessidade de amparar-me, em um assunto
tão importante, em informação que poderia ser caracterizada como falatório. Se dependesse
de mim, isto não ocorreria, posto que eu adotaria a conduta sensata de reunir-me
com o Executivo e examinar conjuntamente o caso, descobrindo quais são seus pontos
de vista e talvez elaborando um programa comum para resolver o assunto. Entretanto,
naturalmente meus colegas jamais acederiam em resolver-se o problema desta maneira.
Seus escrúpulos em obter diretamente informações exatas não os impede de estarem
muito perturbados com o que souberam de maneira indireta. Seu conhecimento dos
fatos que acabei de relatar explica porque o presidente deste Tribunal, normalmente um
modelo de decoro, julgou conveniente agitar sua toga na face do Executivo e ameaçá-lo
de excomunhão se não comutasse a sentença. Suspeito que por isso se explica a proeza
de levitação, empreendida pelo meu colega Foster, pela qual toda uma biblioteca de
livros jurídicos foi removida de sobre os ombros dos acusados. É o que explica igualmente
porque também meu colega legalista Keen imitou Pooh-bah na comédia antiga,
caminhando até o outro lado do palco para dirigir algumas observações ao Poder Executivo
em sua "condição de cidadão privado" (permitome observar, incidentalmente, que o
conselho do cidadão privado Keen será publicado na coletânea de jurisprudência deste
Tribunal às expensas dos contribuintes).
Devo confessar que, quanto mais velho me torno, mais perplexo fico ante a recusa
dos homens em aplicar o senso comum aos problemas do direito e do governo; e este
caso verdadeiramente trágico aprofundou meu sentimento de desânimo e consternação a
este respeito. Desejaria apenas poder convencer meus colegas da sabedoria dos princípios
que tenho aplicado à função judicial desde que a assumi. A propósito, por uma espécie
de um triste fechar de um círculo, deparei-me com problemas semelhantes aos que
ora aqui se esboçam, justamente no primeiro caso que julguei como juiz de primeira
instância do Tribunal do condado de Fanleigh.
Uma seita religiosa expulsara um sacerdote que, segundo se dizia, tinha se convertido
aos princípios e práticas de uma seita rival. O sacerdote difundiu uma nota acusando
os chefes da seita. Certos membros leigos dessa igreja anunciaram uma reunião
pública em que se propunham explicar a posição da mesma. O sacerdote assistiu a essa
reunião. Alguns afirmaram ter-se ele introduzido furtivamente, utilizando-se de um dis25
farce; o sacerdote declarou em seu testemunho que tinha entrado normalmente como um
membro do culto. De qualquer forma, quando os discursos começaram, ele os interrompeu
aludindo a certas questões respeitantes aos negócios do culto e fez algumas declarações
em defesa de seus próprios pontos de vista. Foi atacado por participantes da reunião
que lhe deram uma enorme surra, do que lhe resultou, dentre outros ferimentos, uma
fratura na mandíbula. O sacerdote intentou uma ação de indenização contra a associação
patrocinadora da reunião e dez indivíduos que alegava terem sido seus agressores.
Quando chegamos à fase de julgamento, o caso pareceu-me, a princípio, muito
complicado. Os advogados levantaram múltiplos problemas legais. Havia difíceis questões
concernentes à admissão da prova e relativamente à demanda contra a Associação,
alguns problemas girando em torno da questão de saber-se se o sacerdote havia se insinuado
ilicitamente na reunião ou se havia recebido autorização para dela participar.
Como noviço na magistratura, sentia-me impaciente por aplicar meus conhecimentos
adquiridos na Faculdade, e logo comecei a estudar estas questões atentamente, lendo
todas as fontes mais autorizadas e preparando considerandos bem fundamentados. À
medida que estudava o caso envolvia-me progressivamente mais em suas perplexidades
jurídicas, tendo chegado a aproximar-me de um estado semelhante àquele de meu colega
Tatting neste caso. Subitamente, porém, apercebi-me claramente de que todas estas
intrincadas questões realmente nada tinham a ver com a questão, e comecei a examinála
à luz do senso comum. Imediatamente o litígio ganhou uma nova perspectiva e deime
conta de que a única coisa que me incumbia fazer era absolver os acusados por falta
de provas.
Cheguei a esta conclusão pelas seguintes considerações. O conflito em que o autor
fora ferido tinha sido muito confuso, com algumas pessoas tentando chegar ao centro
do tumulto, enquanto outras procuravam afastar-se dele; algumas golpeando o sacerdote,
ao passo que outras aparentemente tentando protege-lo. Teriam sido necessárias algumas
semanas para apurar a verdade. Decidi então que nenhuma mandíbula fraturada
era tão importante para a Commonwealth (os ferimentos do sacerdote, seja dito de passagem,
tinham se curado neste meio tempo, sem que o desfigurassem e sem qualquer
diminuição de suas faculdades normais). Ademais, convenci-me profundamente de que
o autor tinha, em larga medida, dado causa ao conflito. Ele sabia quão inflamadas estavam
as paixões e podia facilmente ter encontrado outro lugar para exprimir seus pontos
de vista. Minha decisão foi amplamente aprovada pela imprensa e pela opinião pública,
as quais não podiam tolerar as concepções e práticas que o sacerdote expulso tentava
defender.
Agora, depois de trinta anos, graças a um ambicioso Representante do Ministério
público e a um porta-voz do júri legalista, encontro-me diante de um caso que suscita
problemas que, no fundo, são muito semelhantes àqueles contidos no litígio que terminei
de expor. O mundo não parece mudar muito, mas desta vez não se trata de um julgamento
por quinhentos ou seiscentos frelares e sim da vida ou morte de quatro homens
que já sofreram mais tormento e humilhação do que a maioria de nós suportaria em mil
anos. Concluo que os réus são inocentes da prática do crime que constitui objeto da acusação
e que a sentença deve ser reformada que acabam de ser enunciados, eu desejaria
reexaminar a posição que assumi anteriormente. Quero expressar que depois de ouvi-los
sinto-me bastante fortalecido em minha convicção de que não devo participar do julgamento.
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Ocorrendo, destarte, empate na decisão, foi a sentença condenatória do Tribunal
de primeira instância confirmada. E determinou-se que a execução da sentença tivesse
lugar às 6 horas da manhã da sexta-feira, dia 2 de abril do ano 4300, ocasião em que o
verdugo público procederia com toda a diligência até que os acusados morressem na
forca.
Tatting, J.
O presidente do Tribunal perguntou-me se, depois dos dois votos que acabam de
ser enunciados, eu desejaria reexaminar a posição que assumi anteriormente. Quero
expressar que depois de ouvi-los sinto-me bastante fortalecido em minha convicção de
que não devo participar do julgamento.
Ocorrendo, destarte, empate na decisão, foi a sentença condenatória do Tribunal de primeira
instância confirmada. E determinou-se que a execução da sentença tivesse lugar
às 6 horas da manhã da sexta-feira, dia 2 de abril do ano 4300, ocasião em que o verdugo
público procederia com toda a diligência até que os acusados morressem na forca.
POST SCRIPTUM
Tendo o Tribunal pronunciado seu julgamento, o leitor intrigado pela escolha da
data pode desejar ser relembrado que os séculos que nos separam do ano 4300 são aproximadamente
os mesmos que se passaram desde a Época de Péricles. Não há provavelmente
nenhuma necessidade de observar que o Caso dos Exploradores de Cavernas não
pretende ser nem um trabalho de sátira, nem uma profecia em qualquer sentido comum
do termo. No que concerne aos juízes que compõem o Tribunal do Presidente Truepenny,
eles são naturalmente tão fictícios quanto os fatos e precedentes com os quais
lidam. O leitor, que se recusar a aceitar este ponto de vista e que procurar descobrir semelhanças
contemporâneas onde nada disso foi buscado ou considerado, deveria ser
advertido de que se mete numa aventura sob sua própria responsabilidade, a qual pode
levá-lo a desviar-se das verdades enunciadas nos votos emitidos pela Corte Suprema de
Newgarth. O caso foi imaginado com o único propósito de focalizar certas posturas filosóficas
divergentes a respeito do direito e do governo. Posturas estas que são hoje ainda
as mesmas que se agitavam nos dias de Platão e Aristóteles. E talvez elas continuem a
apresentar-se mesmo depois que a nossa era tenha pronunciado a propósito a sua última
palavra. Se há alguma espécie de predição no caso, não vai além da sugestão de que as
questões nele versadas encontram-se entre os problemas permanentes da raça humana